Em meio à escassez, falta de recursos básicos e a devastação das enchentes, diversos gaúchos abriram as portas de casa para receber familiares, amigos e conhecidos por tempo indeterminado. Números da Defesa Civil apontam que mais de meio milhão de pessoas estão desalojadas — isto é, não estão em abrigos, mas sim acolhidas em residências.
De um dia para o outro, apartamentos e casas dobraram, triplicaram e até mais do que quintuplicaram a população. Alguns passaram a ter animais de estimação, como cães, gatos e cavalos. Na prática, viraram quase “mini abrigos”, ao acolher aqueles que foram impactados pela inundação.
Essa “migração” foi especialmente evidente em Canoas — na região metropolitana, um dos municípios mais abalados pelo desastre climático. Por lá, as águas quase dividiram a cidade ao meio, submergindo praticamente todo o lado oeste. De bairros densamente populosos, como Mathias Velho, Harmonia e Rio Branco, os canoenses saíram em direção a amigos, familiares e abrigos na parte leste.
Conheça a seguir quatro histórias na cidade de Canoas:
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Vinte e duas pessoas em uma casa: ‘Todo mundo que a gente acolheu aqui perdeu a casa totalmente, a água passou do teto’
Por via das dúvidas, a dona de casa Júlia Silveira, de 25 anos, recebeu diversos familiares do marido em casa às vésperas da inundação deixar grande parte de Canoas debaixo d’água. Nenhum deles imaginava a tragédia que estava por vir. O tom inicial era até descontraído, de quem estava com visitas em casa. A situação mudou no dia seguinte.
“De primeiro momento, ninguém acreditou que iria acontecer. Nunca aconteceu, pelo menos não na área em que eles moravam”, explica Júlia. Ela recebeu sogros, cunhados e mais familiares do marido, todos do bairro Mathias Velho, além de amigos. De dois adultos e duas crianças, a casa passou a comportar 15 adultos e sete crianças — divididos em três quartos e um banheiro. Após alguns dias, o contingente reduziu de 22 para cerca de 16.
“Todo mundo que a gente acolheu aqui perdeu a casa totalmente. A água passou do teto”, conta. “Agora que começou a cair a ficha. Porque, Deus o livre, ninguém acreditava que iria acontecer tudo o que aconteceu em toda Canoas e em todo o Rio Grande do Sul. Parece que não tem fim”, desabafa.
A maior dificuldade é a água. Moradora do bairro Estância Velha, Júlia relata um fornecimento regular apenas por um dia, enquanto as torneiras ficaram praticamente zeradas por ao menos 10. De energia, foram dois dias no escuro. “Desde que a coisa ficou feia, a gente está em uma luta diária: atrás de comida, de água.”
“Se eu falar que não impactou nada é mentira minha, porque com certeza impactou. De uma casa que tinha quatro pessoas agora tem 16. É muita diferença”, compara. Segundo ela, o convívio nem sempre é fácil, diante dos hábitos de cada um, mas agradece por ter um lar para receber os entes queridos.
“Só por eles estarem em família, com gente que gosta e quer ajudar, deve ser uma alívio para a mente depois de tudo o que aconteceu”, avalia. “E tudo o que ainda tem por vir, porque, depois que a água baixar, cada um entrar na sua casa, ver e tiver certeza que realmente tudo aquilo aconteceu, daí acho que o baque vai ser pior.”
‘Sou, no momento, o porto seguro deles. Nunca pensei que teria que virar o abrigo deles; Os dias tem sido uma mistura de luta com luto’
Os familiares da confeiteira Fernanda Pereira de Andrades, de 33 anos, também correram para a casa dela quando as águas invadiram grande parte de Canoas. O local, no bairro Olaria, não foi afetado pelas enchentes. Com isso, 22 pessoas — 12 crianças e 10 adultos — chegaram a dividir um apartamento de 41m². Agora, são 12 ao todo.
“Estou tentando ser forte emocionalmente, pois eu sou, no momento, o porto seguro deles. Nunca pensei que teria que virar o abrigo deles. Os dias tem sido uma mistura de luta com luto”, desabafa.
Com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, a casa se transformou em um abrigo. Nos primeiros dias, a hora de dormir — quando o cansaço extremo superava a ansiedade, a tristeza e o medo de saques — era a mais dramática.
Por dias, não havia camas nem colchões para todos. Alguns adultos dormiam sentados. “Antes de conseguirmos alguns colchões doados, uns dormiam com umas cobertas no chão ou em cima de um tapete. Uns dormiam sentados. Eram todos amontoados. Era uma situação bem difícil, bem complicada”, diz.
São todos da mesma família, incluindo os pais de Fernanda, irmãos, cunhados, sobrinhos. No grupo, há uma criança autista e um bebê de um ano. Foram resgatados de barco depois de deixarem quatro casas diferentes, todas destruídas pelas enchentes, no bairro Mathias Velho.
Fernanda foi a “terra firme”. “Mesmo não sendo diretamente afetada pelas enchentes, eu me sinto muito triste pela minha família estar passando por isso e ver muitas memórias afetivas ‘afogadas’. Não eram só bens materiais, eram lembranças e conquistas de uma vida de trabalho, de sacrifícios”, conta.
Por um tempo, os banhos foram tomados dia sim, dia não. Com o fornecimento de água interrompido, a família se armava de galões e baldes e se revezava para buscar água em vizinhos que tinham poços artesianos. As crianças tomavam banho na banheira – a água era aquecida numa chaleira; os adultos usavam baldes.
Foram 10 dias vivendo no aperto, desde o dia 4. Na quarta-feira, 15, parte da família conseguiu uma casa em um bairro não atingido em Cachoeirinha, município parcialmente afetado na Grande Porto Alegre. Agora, são 12 pessoas na casa de Fernanda. Há mais espaço, mas a angústia continua.
Para se alimentar, a família recebe doações de marmitas, além de cestas básicas. Faltam roupas masculinas e femininas de tamanhos grandes.
Além disso, depois de duas semanas, a família apresenta sinais de exaustão. Fernanda está gripada, com dores no corpo. Teve febre por três dias. Na quarta-feira, os filhos, de 4 e 7 anos, começaram a sentir o mesmo. “Tem hora que me deito, com dor de cabeça e no corpo, mas não consigo ficar por muito tempo, tomo um remédio e volto a fazer as coisas”.
Com os alívios da medicação, ela retomou a produção autônoma de bolos, doces e salgados de sua confeitaria, a Amore Confeitaria. O pequeno negócio, em uma sala comercial dividida com uma amiga, também sofre os impactos da tragédia na economia local. Muitos clientes cancelaram pedidos após perderem suas casas. A saída emergencial foi fazer uma rifa para pagar fornecedores e as contas de água e luz.
‘O bairro está lotado de gente. Não foram apenas casas afetadas, foram mercados, postos de saúde, escolas, creches’
No bairro São José, o lar de Aline Kronbauer, de 40 anos, dobrou a população. Onde a profissional de tecnologia da informação vivia com o marido, Bruno, e o cão Ragnar, estão o casal de amigos Gisele e Pedro, além da cadela Varsóvia, há duas semanas. Sem data para sair, todos dividem o mesmo teto enquanto o nível das águas segue alto e reduz lentamente nos bairros da cidade.
“Ficamos sabendo da água e eles moram no bairro Mathias Velho. Toda a família deles mora lá, portanto, não tinham pra onde irem”, relata. “Oferecemos a casa por precaução, pois achávamos que a água não iria chegar até a casa deles. Eles vieram somente com a roupa do corpo e a filha de quatro patas.”
Aline conta que, ao acordarem no dia seguinte, os amigos souberam que sua casa, assim como a dos sogros, da mãe, dos irmãos, estava totalmente submersa. “Eles saíram achando que não chegaria até a casa deles, saíram por precaução pois é muito longe do leito do rio. Vieram aqui, pra casa, com a roupa do corpo e escova de dentes”, explica.
Por isso, o casal doou algumas roupas, além de conseguir mais itens com conhecidos. “Os amigos que ficaram sabendo da situação trouxeram coisas aqui, em casa. Ajudamos muitas pessoas, pois 40% dos colaboradores da empresa onde eu trabalho foram afetados. Então, doamos cobertas, roupas. Criamos uma rede de apoio, na verdade.”
Além de acolher os amigos, Aline também está à frente do desenvolvimento da plataforma Tchê Acolhe, voltada a reunir pessoas e animais perdidos, divulgar demandas de doação e informar endereços de abrigos. Segundo ela, foram mais de 20 mil cadastros desde a criação.
Ela conta que a movimentação na sua vizinhança aumentou após a enchente. “O bairro está lotado de gente, porque não foram apenas casas afetadas, foram mercados, postos de saúde, escolas, creches. Moro perto de quatro abrigos, um deles é a Ulbra (que tem mais de 6 mil pessoas abrigadas)”.
Aline conta que o começo foi mais difícil, pela tensão de como seriam os dias seguintes. “Não sabíamos como iria ser a questão da água, e faltou até comida nos mercados”, relembra.
Ela conta que os preços de itens básicos subiram rapidamente, como de gás de cozinha e alimentos. “Agora temos água dia sim, dia não, mas ontem (quarta-feira, 15) foi o primeiro dia que teve pressão suficiente para abastecer a caixa d’água. Ou seja, banho decente somente conseguimos tomar ontem.”
Treze pessoas em 44m². E uma hora de água por dia
Outro caso é o do desenvolvedor de software Fernando de Oliveira Neto, de 27 anos, que chegou a acolher 13 pessoas no apartamento de 44 m² (dois quartos e um banheiro) onde vive com a esposa. “Nada aconteceu com elas, graças a Deus. Só danos materiais, pelo efeito da enchente”, conta.
Localizado no bairro Estância Velha, o endereço foi um “mini abrigo” por dois dias. Depois, uma parte dos familiares voltaram para a casa, após a revogação da indicação de evacuação de uma área, e os diretamente afetados se distribuíram por locais menos limitados de espaço.
Segundo Fernando, os dois dias como “mini abrigo” foram difíceis especialmente pelo espaço. Além disso, uma parte dos desalojados precisou de roupas emprestadas. Havia comida e água, mas de forma racionada diante da escassez no fornecimento.
“A água, como eu moro em condomínio, estamos racionando desde o começo. Aí, quando terminou, foi abastecido com caminhões pipa e, agora, está voltando a água um dia sim e outro não. Mesmo assim, o condomínio economiza, disponibilizando uma hora por dia.
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