Às 6h, os trabalhadores da construção civil começam a chegar ao canteiro de obras para o desjejum às 7h. No local onde é servida a refeição, as cadeiras são reorganizadas, um projetor é posicionado em frente à parede e duas mulheres se apresentam ao público majoritariamente masculino.
Elas estão ali para falar sobre violência doméstica e feminicídio. Rapidamente, o refeitório improvisado se transforma em uma sala de aula sobre relações de gênero.
Essa cena se repete desde 2016 em Belém, no Pará, onde o Tribunal de Justiça (TJPA), em parceria com o Sindicato da Indústria da Construção do Estado do Pará (Sinduscon-PA), desenvolveu o projeto Mãos à Obra. A iniciativa leva a canteiros de obra – onde a maioria dos profissionais ainda é formada por homens –ações de conscientização para a prevenção à violência contra a mulher.
Desde sua formação, o Mãos à Obra já falou com mais de 6 mil operários. Só em 2022, a equipe fez visitas a nove canteiros de obra – a última ocorreu no último 23 de novembro, no bairro Umarizal, na capital.
O currículo abrange assuntos como as cinco formas de violência (sexual, física, patrimonial, psicológica e moral) e explica como funcionam a Lei Maria da Penha e as medidas protetivas.
A ideia é informá-los sobre as repercussões de atos de agressão e sobre a manutenção de relações saudáveis nas famílias. Ainda são dados encaminhamentos para defensoria pública ou para acompanhamento psicológico, por exemplo.
A partir dos encontros, a equipe espera que os homens se tornem multiplicadores desse conhecimento, afirma a pedagoga Riane Freitas, servidora da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do TJPA.
“Todos nós temos mulheres em nossas vidas. Não é porque você não é autor de violência que não deve ter essa informação. Nós dizemos que queremos eles como aliados, que, se eles transmitirem essas ideias a uma pessoa, já ganhamos o dia. Deixamos folders com orientações que podem ajudar pessoas que estão passando por isso”, descreve.
Envolver os operários da construção civil foi uma das formas encontradas de aproximar os homens da discussão, de acordo com Reijjane de Oliveira, juíza auxiliar da Cevid.
“Durante muito tempo, se colocou a questão da violência contra mulher como um assunto para ser tratado por mulheres. Óbvio que isso continua sendo importante, mas a maioria dos agressores é homem. Portanto, devem fazer parte e discutir quais são os caminhos para se diminuir essa violência”, pondera Reijane.
A estratégia de levar a conversa ao ambiente de trabalho foi elaborada pela equipe justamente pensando nas particularidades da rotina e do perfil dos profissionais.
“Essas pessoas exercem uma atividade muito pesada e exaustiva para o corpo. Elas geralmente saem de casa muito cedo e voltam, no fim do dia, extremamente cansadas. Quando chegam em casa, não têm mais nenhuma disposição para ir a uma escola ou qualquer outro lugar para ouvir uma palestra. Dificilmente teriam acesso a esse tipo de informação”, aponta a juíza.
O projeto foi bem visto pelo pedreiro Jocivaldo Gonçalves Damasceno, de 43 anos, que participou de uma das ações, em junho, em um canteiro de obras no bairro de Nazaré. “Quando chega alguém para falar disso, ainda que eu não faça, alguém que é agressivo precisa ouvir e passar por essas palestras”, diz o homem.
Casado e pai de duas filhas, Jocivaldo via com frequência o seu avô bater na sua avó. “Para mim, é de grande importância e creio que muitos companheiros gostaram. O que não tive quando era mais jovem (orientação) estou tendo agora. Antigamente, a gente não tinha essa convivência. Hoje, temos mais meios de denunciar”, afirma.
Construção civil
O público-alvo foi escolhido visando ainda a minimizar a incidência de casos de agressão entre os profissionais do setor, conta a pedagoga Riane Freitas.
As servidoras públicas procuraram o Sinduscon-PA para viabilizar o projeto por meio de parceria. O Mãos à Obra virou um módulo da iniciativa Construindo Cidadania, do sindicato, que trata de temas relevantes à saúde dos trabalhadores.
O impacto tem sido positivo, conta Alex Dias Carvalho, presidente do Sinduscon-PA. “O mais transformador de tudo isso é perceber na interação que há um nível de interesse do público, de voluntariamente darem depoimentos de toda sorte – seja como alguém que cometeu um ato violento ou alguém que sofreu alguma violência, ou que conviveu com isso dentro do ambiente familiar. Temos ampla convicção de que, de certa forma, estamos contribuindo para uma conscientização maior, e isso nos deixa muito gratificados.”
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