Morre Bento XVI, o papa que renunciou e defendeu diálogo entre a fé e a razão

Antecessor de Francisco, o alemão Joseph Ratzinger era um religioso tímido e intelectual, devorado pela modernidade; foi o 1º que optou por deixar o cargo mais alto do Vaticano em sete séculos

PUBLICIDADE

Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

Muito maior do que um reino/ é uma abdicação. Os versos são de Cassiano Ricardo e ajudam a explicar a atração exercida pela renúncia de Bento XVI. Desde 1294, quando Celestino V decidira descer do trono de Pedro, nenhum outro papa ousara o gesto. Mais do que procurar suas razões, importa mostrar as consequências do ato: foi a renúncia, em 2013, que revelou o papado de Joseph Ratzinger como o fracasso da construção de uma terceira via na Igreja, uma ponte entre progressistas e tradicionalistas.

PUBLICIDADE

Bento XVI morreu neste sábado, 31, aos 95 anos, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano. Nos últimos dias, o Vaticano já havia informado que o pontífice emérito estava com a saúde frágil, por causa da idade avançada, e o papa Francisco pediu orações por ele. O velório de Bento XVI começará na segunda-feira, 2, no Vaticano. Francisco celebrará o funeral do papa emérito na quinta-feira, 5, na Praça de São Pedro.

A ruptura da renúncia libertou Joseph Ratzinger de ser visto apenas como o instrumento dos tradicionalistas, o papa do combate à hermenêutica que buscava no marxismo o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Também não permitia mais que fosse só explicado como o homem das podas nas vinhas do Senhor, o da condenação ao relativismo moderno e ao secularismo, o pessimista agostiniano que via degradação na cidade dos homens.

Papa Bento XVI na missa de inauguração de seu pontificado, na Praça São Pedro Foto: Celso Junior/Estadão - 24/04/05

A incompreensão foi a tragédia que selou o destino do papa, sucedido pelo argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Em um mundo sufocado pelo discurso da técnica, da eficiência e da utilidade, ele escreveu três encíclicas – Deus caristas est, Spe salvi e Caritas in veritate – para afirmar a caridade, o amor e a esperança. O alemão Ratzinger nasceu e testemunhou a maior crise da modernidade, marcada pela ascensão do nazismo e pela destruição da 2.ª Guerra Mundial.

Publicidade

Em torno do jovem seminarista havia uma atmosfera de götterdämmerung (crepúsculo dos deuses), a mesma que envolvera Santo Agostinho ao testemunhar as invasões bárbaras no Império Romano. Em sua obra Cidade de Deus, Agostinho, o bispo de Hipona, se esforça para mostrar aos fiéis por que a desgraça de Roma saqueada pelos godos de Alarico não devia afastá-los da fé.

Agostinho via o mundo marcado pelo pecado original e os que nele persistiam construiriam a cidade dos homens, enquanto os eleitos pela Graça, mediada pela Igreja, ergueriam a de Deus. Seu mundo parecia perecer, e as pessoas que o cercavam se perguntavam por que Deus permitira aquilo, assim como Ratzinger se questionaria, séculos depois, ao visitar o campo de concentração de Auschwitz: ‘Onde estava Deus?”

A denúncia do papa era a de quem reconhecia na crise da razão moderna o drama de um humanismo sem Deus, apontado antes pelo teólogo francês Henri du Lubac. “A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer onipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade”, escreveu Bento XVI na encíclica Caritas in veritate.

Em suma, sem Deus, não há proteção contra os extremos do pensamento e sem razão, contra os extremos da fé. Ao buscar o diálogo, Ratzinger reeditava o conservadorismo com roupa nova? Ou queria superar a modernidade em uma pós-modernidade em que houvesse espaço para Deus? Aqui residia a sua terceira via: longe das concessões à modernidade dos progressistas, mas também ciente dos perigos de uma fé reacionária, fechada ao desenvolvimento humano integral.

Publicidade

Ratzinger fora o conservador que, em 2007, escrevera a exortação apostólica Sacramentum Caritatis, quando sugeriu o ensino de história da arte nos seminários bem como pediu aos padres cuidado com a arquitetura dos templos e com a música dos cultos e exaltara o canto gregoriano e o latim. Ele via na arte uma manifestação do sagrado que devia servir ao fiel que experimenta o belo como expressão do divino. Aqui a influência da teologia como estética do sagrado de Hans Urs von Balthasar.

Ao saber de sua eleição como papa, após a morte de João Paulo II em 2005, o teólogo Leonardo Boff pensou: “É um papa que vai sofrer muito, pois talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher, e se exposto às multidões”. Boff conhecera o pontífice nos anos 1970, quando escrevia sua tese A Igreja como Sacramento Fundamental do Mundo Secularizado.

Missa campal e canonização de Frei Galvão realizada pelo Papa Bento XVI no Campo de Marte, em 2007 Foto: Helvio Romero/Estadão - 11/05/2007

O brasileiro seria um dos 110 teólogos punidos pelo cardeal Ratzinger, com a deposição de cátedra e a imposição do silêncio quando ele dirigia a Congregação para a Doutrina da Fé. Para Boff, Ratzinger via a Igreja como fortaleza sitiada por inimigos – os erros e desvios da modernidade. “A centralidade era a ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as práticas”, escreveu.

O papa manteve, assim, a punição do amigo Hans Küng, o teólogo que desafiara o dogma da infalibilidade papal. Também não fez abertura à obra do jesuíta Karl Rahner, com o cristianismo oculto e o diálogo ecumênico.

Publicidade

Então cardeal Joseph Ratzinger (à esquerda) durante visita ao Rio de Janeiro, em julho de 1990 Foto: Tatiana Constant/Estadão - 27/07/1990

PUBLICIDADE

Mas Bento XVI também pode ser lido pelos símbolos que o acompanhavam. A começar pela escolha do nome Bento, que parece lembrar Bento XV, o papa que buscara acabar em 1915 com a luta entre progressistas e integralistas que marcara o papado de Pio X, inimigo do modernismo na Igreja. “Não é o combate ao relativismo o grande tema de seu papado, mas o amor”, disse Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Borba acredita que isso só pôde ser percebido quando Ratzinger deixou de exercer o poder ao lado dos conservadores. De tal forma que passara despercebido o fato de sua última encíclica, Caritas in veritate, retomar e modernizar a encíclica Populorum progressio, do papa Paulo VI, que abriu as portas para a Igreja militante da Teologia da Libertação nos anos 1960.

Ele chama a atenção para o símbolo de seu escudo papal: a imagem de uma concha. Bento XVI queria esvaziar o oceano com a concha, como a criança na fábula sobre Agostinho? O papa intelectual e tímido não soube lidar com a administração da Igreja, dos escândalos de pedofilia – quando aconselhou que não se denunciasse às autoridades civis os padres pedófilos – à gestão das intrigas da Cúria.

Bento XVI cumprimenta Francisco  Foto: Osservatore Romano/AP

Bento sucumbiu às coisas da terra. Renunciou e abriu caminho para o papado de Francisco. Já se disse que ele se tornou um papa difícil de ser amado, ainda mais por quem espera da Igreja o que ela não oferece: aceitação de escolhas contrárias ao que é fundamental na fé. Essa instituição com 2 mil anos de história, que tem como lei suprema a salvação das almas, precisa falar ao mundo. Ratzinger não conseguiu. Sua tragédia foi a mesma do cristianismo: devorado pela modernidade que ajudou a criar.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.