Morre d. Paulo Evaristo Arns, o homem que a ditadura não silenciou

Último dos grandes líderes da Igreja Católica dos anos 1970, o cardeal dedicou a vida aos pobres e à defesa dos direitos humanos

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Na Sé. Emérito, d. Paulo Evaristo Arns festejou na catedral os 71 anos de sacerdócio, antes da internação Foto: Werther Santana/Estadão

As férias no Sul sempre foram sagradas. Janeiro ou fevereiro, o cardeal d. Paulo Evaristo Arns ia passar três ou quatro semanas com a família - irmãos e sobrinhos - dividindo o tempo entre os arredores de Curitiba, no Paraná, para onde a maioria dos Arns emigrou, e a pequena Forquilhinha, sua terra natal, na região de Criciúma, antiga colônia de imigrantes alemães em Santa Catarina.

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Quinto dos 14 filhos que Gabriel Arns e Helena Steiner tiveram, Paulo Evaristo nasceu em 14 de setembro de 1921 e morreu nesta quarta-feira, 14, em São Paulo, aos 95 anos. A exemplo do irmão mais velho, frei Crisóstomo, entrou em um seminário franciscano, vocação que o pai agricultor apoiou com entusiasmo, embora tentasse adiar a matrícula o mais possível, só porque as despesas do internato pesavam no orçamento. Das sete irmãs moças, três optariam pelo convento.

“Paulo, nunca se envergonhe de dizer que você é filho de colono”, pediu Gabriel Arns. Muito depois, quando concluía os estudos na Sorbonne com a tese A Técnica do Livro Segundo São Jerônimo, o frade mandou um telegrama para Forquilhinha. “O filho do colono é doutor pela Universidade de Paris e não se esqueceu da recomendação do pai.”

De volta ao Brasil, foi professor de Teologia no seminário franciscano de Petrópolis (RJ), onde trabalhou dez anos em favelas, período que descreveria como o mais feliz da vida. Em maio de 1966, foi nomeado bispo auxiliar do então cardeal de São Paulo, d. Agnelo Rossi, que o designou para a região de Santana, na zona norte. 

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Dedicava-se aos presos da Casa de Detenção do Carandiru e criava núcleos das comunidades eclesiais de base (Cebs), experiência pioneira na arquidiocese, quando um telefonema do núncio apostólico lhe comunicou que seria o novo arcebispo de São Paulo. Não era um convite, mas uma ordem do papa Paulo VI, que transferira o cardeal Rossi para Roma. Era 1970. Um ano antes, tivera os primeiros contatos com vítimas do regime militar, início da luta em defesa dos direitos humanos que marcaria sua carreira.

Designado pelo cardeal para verificar as condições em que se encontravam os frades dominicanos e outros religiosos na prisão, constatou que eles estavam sendo torturados.

Os militares não gostaram da nomeação de d. Paulo. Quando foi elevado a cardeal, em março de 1973, uma das suas primeiras medidas foi criar a Comissão Justiça e Paz, formada por advogados e outros profissionais, para atender pessoas perseguidas pela ditadura. Funcionava na Cúria Metropolitana, sinônimo de refúgio e esperança para as famílias de mortos e de desaparecidos.

Respeitado e temido, amado e odiado, d. Paulo tornou-se um símbolo de resistência. Denunciou as torturas nos quartéis, visitou presos em suas celas, liderou atos de protestos. No período mais difícil do regime, procurou o presidente Emílio Medici, em nome do episcopado paulista, para lhe entregar o documento Não te é lícito, no qual os bispos exigiam o fim das torturas. Medici deu um murro na mesa ao ouvir a advertência do cardeal e o pôs para fora de seu gabinete. “O senhor fique na sacristia, que nós cuidamos da ordem”, irritou-se o general. D. Paulo pegou de volta o exemplar da Rerum Novarum, a encíclica de Leão XIII que levara de presente, mas fora jogada de lado. Depois disso, só tiveram contatos protocolares. 

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Em defesa dos direitos humanos, visitava operários, estudantes e políticos nas celas da polícia. Foi numa sala da repressão que conheceu Luiz Inácio Lula da Silva, que havia sido detido após as greves dos metalúrgicos do ABC. Ficaram amigos pelo resto da vida. Na época, o bispo de Santo André era d. Cláudio Hummes, mais tarde arcebispo de São Paulo, que abrigou nas igrejas da diocese trabalhadores impedidos de se reunir. 

Missas. Em março de 1973, d. Paulo abriu as portas da Catedral da Sé para uma missa em memória do estudante Alexandre Vannuchi Leme, aluno de Geologia da Universidade de São Paulo, que havia sido torturado e morto em dependências do Exército. O arcebispo considerava esse ato como sua primeira e, até então, a mais corajosa reação da Igreja ao regime. Os militares prometiam reprimir um protesto programado pelos colegas de Alexandre na Cidade Universitária. D. Paulo preferiu celebrar uma cerimônia religiosa para evitar a violência. 

Com o presidente Ernesto Geisel, os problemas se agravaram. Embora tivesse um canal de comunicação direta com o governo - o general Golbery do Couto e Silva -, o cardeal enfrentou situações difíceis. O auge foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, na sede do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2.º Exército.

D. Paulo promoveu um ato ecumênico na catedral em memória de Herzog, que era judeu. A cerimônia levou mais de 8 mil pessoas à Praça da Sé. Ao lado de vários bispos, entre os quais d. Hélder Câmara, do Recife, lá compareceram o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright - dois aliados que, daquele dia em diante, lutariam de mãos dadas com o cardeal em defesa dos direitos dos perseguidos pelo regime.

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Três meses depois, morria sob tortura o operário Manuel Fiel Filho, cuja prisão d. Paulo denunciara. Geisel exonerou o comandante do 2.º Exército, general Ednardo d’Ávila Melo, com quem o cardeal tivera vários atritos. Um deles envolveu o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que estava na mira da repressão. O arcebispo recorreu ao governo e obteve a promessa de que Cardoso não sofreria abusos. Nasceu aí a amizade entre d. Paulo e o futuro presidente.

A defesa dos direitos humanos, também lhe criou inimigos. “O cardeal só defende bandidos”, reclamavam autoridades policiais. D. Paulo respondia que lutava contra todo tipo de violência. Em 1989, deu um testemunho definitivo. Convocado para servir de mediador no sequestro do empresário Abílio Diniz, na zona sul, não hesitou em arriscar a vida para libertar o dono do Pão de Açúcar. Passou horas se equilibrando no muro até obter um acordo com o sequestradores. Tinha consciência do perigo que corria. Antes de sair de casa, pediu a um padre que o ouvisse em confissão, pois temia ser morto.

Arquidiocese. No plano pastoral, o arcebispo revolucionou São Paulo. Descentralizou a administração, delegando poder e atribuições aos bispos auxiliares e ao clero. Seu projeto era, ainda no pontificado de Paulo VI, dividir a arquidiocese em dioceses interdependentes. Não conseguiu. “A divisão feita em 1989 não corresponde a nosso projeto”, lamentou em 1996, alguns dias antes de encaminhar ao papa a renúncia, por motivo de idade (75 anos). Dizia-se que d. Paulo perdeu território e poder com a criação das dioceses de Campo Limpo, Osasco, São Miguel Paulista e Santo Amaro, desmembradas de São Paulo, mas não foi isso que ele mais sentiu. 

O que doeu foi a frustração de um plano que ele vinha construindo havia tanto tempo para dar continuidade a seu estilo de trabalho. “Foi esse, talvez, o capítulo mais triste de minha vida de arcebispo sob a orientação do papa João Paulo II”, escreveria em seu livro Da Esperança à Utopia. A rejeição do projeto era consequência de sucessivos atritos com a Cúria Romana. Cinco anos antes, em 1984, d. Paulo enfrentara dificuldades no Vaticano, quando intercedeu com o cardeal Aloísio Lorscheider, em favor do franciscano Leonardo Boff, defensor da Teologia da Libertação, que havia sido censurado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A mediação não funcionou. Reduzido ao silêncio, Boff deixou o sacerdócio.

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Ao apresentar o pedido de demissão, era arcebispo havia 26 anos. Achava que seria afastado imediatamente. Não foi. João Paulo II só nomeou seu sucessor, d. Cláudio Hummes, em abril de 1998. Não era o seu candidato. D. Paulo havia indicado o nome de d. Antônio Celso de Queiroz, um de seus auxiliares. O Vaticano ignorou a sugestão. D. Celso foi nomeado bispo de Catanduva (SP). O estilo e o ritmo da pastoral mudaram, mas o cardeal aposentado permaneceu na capital, a pedido do novo arcebispo. D. Paulo foi morar no Jaçanã, na zona norte, onde continuou escrevendo. Celebrava missa num hospital de idosos aos domingos e recebia pessoas no convento de São Francisco, no centro, às quintas-feiras.

Do Jaçanã, zona norte paulistana, d. Paulo Evaristo Arns mudou-se para uma casa das irmãs franciscanas em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. A rotina continuou a mesma, mas em ritmo mais lento, por causa da saúde debilitada. Vivia altos e baixos. Selecionava as visitas e emocionava-se ao recordar velhos tempos.

Quando teve um enfarte em março de 2005, não passou de um susto, mas foi internado no Instituto do Coração (Incor). Em novembro, fez uma cirurgia para redução da próstata. Nada grave, mas a saúde não estava bem. Sua fragilidade vinha de maio de 1971, quando sofreu um acidente de carro, indo de Santa Catarina para o Paraná. Ficou com problemas circulatórios que se agravaram nos anos seguintes.

Em 1992, sofreu um acidente mais grave: um carro em alta velocidade bateu no jipe militar que o transportava com d. Geraldo Majella Agnelo, em Santo Domingo, na República Dominicana, onde participavam de reunião dos bispos da América Latina. D. Paulo passou 18 horas inconsciente. Não se lembrava de detalhes do acidente, mas ao reconstituir o que lhe ocorreu concluiu de que devia ter sido um atentado. Não imaginava quem pretendia matá-lo, mas insistiu na suspeita. Em 1997, fez uma cirurgia para extirpar um câncer no músculo do olho esquerdo.

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Na casa das irmãs franciscanas, celebrava missa todas as manhãs, lia os jornais, rezava e recebia amigos. Não via televisão. Quando a irmã Zilda Arns morreu no terremoto do Haiti, em 2010, ditou uma declaração à imprensa. “É uma morte que surpreende, mas é uma morte bonita porque ela morre no cumprimento de uma causa em que sempre acreditou.”

Depois de se aposentar, participava de atos públicos só quando convidado. Quando falou, sua palavra repercutiu. Por exemplo, quando deu um extenso depoimento no caderno Aliás, que o Estado publicou em 2005, quando João Paulo II estava muito doente. “Sim, seria hora de o papa renunciar para que a Igreja possa acompanhar o movimento da História”, disse.

Na entrevista ao Aliás, falou sem censura. Até porque não seria mais eleitor, no conclave que elegeria o sucessor de João Paulo II. A eleição do alemão Joseph Ratzinger agradou a d. Paulo. Cinco meses depois da posse de Bento XVI, ele aderiu ao coro dos cardeais eleitores que justificaram a escolha pelas qualidades pessoais do novo papa. “Ratzinger é um homem muito inteligente e de uma sensibilidade muito fina para as dificuldades das pessoas.”

O cardeal consolidou essa convicção nos anos seguintes. Em 2007, na visita de Bento XVI a São Paulo, encontrou-se com Ratzinger. Conversaram em alemão alguns minutos, apenas o suficiente para d. Paulo chegar à convicção de que o sucessor de João Paulo II saíra melhor do que a encomenda. Nas entrelinhas, havia as sequelas das dificuldades que enfrentou no pontificado do polonês Karol Wojtyla.

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Quando Bento XVI renunciou, em 2013, d. Paulo ficou cheio de esperança com a eleição do papa Francisco. “D. Paulo falava com empolgação sobre Francisco, o argentino Bergoglio que ele conhecia há muito”, revelou d. Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC) e ex-bispo auxiliar de São Paulo. D. Paulo voltou à Catedral da Sé duas vezes nos últimos meses: em setembro para comemorar seus 95 anos e em 27 de novembro, na celebração dos 71 anos de ordenação sacerdotal. No dia seguinte, foi internado no hospital Santa Catarina. 

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