Não basta ser contra o machismo, é preciso ser um aliado das mulheres

Se nós homens somos parte do problema, que sejamos parte da solução

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colunista convidado
Por André Fran

Nas últimas semanas, ataques a mulheres na política ganharam as manchetes no Brasil e no mundo. Em uma delas, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, se viu em meio a um furacão de críticas e julgamentos simplesmente por aparecer em um vídeo dançando com amigas durante uma festa particular em sua residência. A cena corriqueira rodou o planeta e despertou a ira dos reacionários de seu país. Os comentários misóginos da oposição causaram comoção entre os finalndeses mais conservadores mas, ao mesmo tempo, motivaram uma reação divertida: mulheres de toda parte postaram vídeos em suas redes sociais dançando em apoio à primeira-minstra. Ainda assim, Marin teve de vir a público explicar o óbvio: dançar em um evento privado deveria ser algo absolutamente normal para qualquer pessoa e é algo que não depõe contra a imagem de ninguém ou atrapalha o exercício de um cargo público. Vale destacar que isso tudo aconteceu na Finlândia, país que ocupa o segundo lugar no ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial.

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Mas as outras situações aconteceram (e seguem acontecendo) aqui mesmo no Brasil, durante o primeiro debate entre os candidatos à presidência do país. O presidente Jair Bolsonaro, incomodado com uma pergunta da jornalista Vera Magalhães, de O Globo, respondeu como lhe é de costume, com ataques misóginos direcionados à sua interlocutora: “você dorme pensando em mim, deve ser apaixonada por mim”.

Todos os demais jornalistas presentes no debate haviam feito questionamentos duros e incisivos a Bolsonaro e aos outros candidatos, mas apenas a pergunta de Vera motivou uma reação agressiva e ataques pessoais por parte do presidente. Também diz muito o fato de que, imediatamente após o acontecido, as primeiras a se manifestarem em defesa da jornalista foram as únicas candidatas presentes no debate: Simone Tebet, do MDB, e Soraya Thronicke, do União Brasil. Os candidatos Lula e Ciro Gomes fizeram críticas tímidas em momentos posteriores.

O episódio praticamente colocou um alvo nas costas da jornalista. Dias depois, cartazes com ofensas e ameaças a sua pessoa foram exibidos por apoiadores de Bolsonaro durante as manifestações bolsonaristas realizadas no feriado do Dia da Independência em todo o Brasil. O auge da perseguição veio ao final do debate entre candidatos a governador do estado de São Paulo. Um deputado bolsonarista, presente no local à convite do candidato Tarcísio de Freitas, ex-ministro e candidato de Bolsonaro, atacou a jornalista Vera Magalhães que cobria o evento. Se no debate presidencial, Vera foi defendida pelas candidatas mulheres, dessa vez Leão Serva, diretor de jornalismo da TV Cultura e apresentador do debate, mostrou como homens devem agir perante agressores machistas. Ele arrancou o celular que o agressor usava para hostilizar Vera e arremessou-o longe como um autêntico quarterback, encerrando assim o ataque.

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Douglas Garcia hostiliza Vera Magalhães Foto: Reprodução

Essas situações ocorreram com poucos dias de diferença e colocaram mulheres no protagonismo do cenário politico nacional e mundial, mas de uma forma lamentável e completamente às avessas. Tanto a primeira-minstra Sanna Marin quanto a jornalista Vera Magalhães são destaque frequentemente em suas áreas de atuação pela competência com que conduzem seu trabalho. E é esse tipo de protagonismo que deveria prevalecer. Não é difícil lembrar do protagonismo feminino no cenário politico mundial. Eu mesmo puxei da memória e lembrei alguns momentos de desataque nas coberturas que fiz.

Lembrei de quando estive na Arábia Saudita, país comandado por uma ditadura extremista religiosa que mantém as mulheres em uma classe inferior a do homem na sociedade, com menos direitos e liberdades. Um lugar onde as mulheres só podem viajar com uma autorização oficial de um responsável do sexo masculino, onde são proibidas de frequentar determinados lugares ou vestirem o que quiserem e onde, apenas recentemente, conquistaram o direito trivial de dirigir um automóvel ou assistir a uma partida de futebol no estádio. Pois nesse lugar, o protagonismo na luta pelos direitos humanos é também protagonizado pelas mulheres. Muitas inclusive seguem presas pelo seu ativismo político. Samar Badawi é uma dessas mulheres. Ela foi condenada a dez anos de prisão em 2018 por lutar contra a lei do guardião, que impede mulheres de estudar ou se casar sem uma autorização do pai ou responsável. Sua irmã, a blogueira Raif Badawi, também está presa por criticar a monarquia saudita que comanda o país. As irmãs Badawi são apenas um exemplo das centenas de mulheres que pagam o preço por lutarem por seus direitos no país.

A pandemia da covid-19 trouxe à luz recentemente a performance das mulheres líderes nesse momento tão crucial que vivemos. Diferentes pesquisas no mundo todo indicaram como as mulheres lidaram de forma diferente, e geralmente melhor do que os homens, durante esses tempos delicados. Das enfermeiras na linha de frente da prevenção e cuidado de pacientes às chefes de estado orientando políticas públicas e sanitárias, as mulheres foram as protagonistas de boa parte dos casos de sucesso ao lidar com o coronavírus. Todos lembram de Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, que comandou o país com os melhores resultados durante o período mais crítico da pandemia. Ou a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, responsável por controlar a pandemia em seu país com um misto de tecnologia, ação efetiva e compaixão. Assim como tantas outras líderes de países como Alemanha, Islândia, Noruega… Teve até uma pesquisa nos Estados Unidos revelando que nos estados com mulheres no comando tiveram índices menores de mortes do que aqueles com homens no posto maior de liderança.

Qualquer análise que pega um recorte temporal ou uma experiência pessoal estará enviesada, e estudos mais profundos, como o do livro “Why leaders fight” (Por que líderes brigam), indicam que homens e mulheres teriam a mesma propensão a iniciar guerras e conflitos quando em posições de poder. Mas se nós homens somos parte do problema, que sejamos parte da solução. Não cometer atos machistas é obrigação moral de qualquer ser humano com o mínimo de caráter. Aprender e não propagar o machismo estrutural é exercício moral diário. E lembrar do protagonismo feminino pelo seu lado positivo e não só quando mulheres são inadvertidamente alçadas aos holofotes pelas mãos e atitudes de homens conservadores, retrógrados e machistas também deveria ser parte de nossas preocupações, também. Como diz o cliché: não basta ser contra o machismo, é preciso ser um aliado das mulheres.

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