Uma das principais demonstrações públicas de prestígio e importância é a recepção com um tapete vermelho. No planejamento urbano, o foco de políticas e investimentos tem deixado evidente que, em tais tapetes, não há pegadas humanas, mas marcas de pneus. As milhares de viagens diárias de ciclistas e pedestres, denominadas mobilidades ativas – ou mais recentemente classificadas como micromobilidades – continuam recebendo pouco planejamento e atenção.
“Todas as cidades são desenhadas pensando na fluidez de uma máquina – o automóvel. Em São Paulo, a CET tem 4 mil funcionários e uns dez cuidam do que chamamos mobilidade ativa”, observa Renata Falzoni, cicloativista e editora do portal Bike É Legal. “O foco tem de ser na vida, no deslocamento de pessoas em ruas seguras e calmas, com redução de velocidade máxima e ganho de velocidade média, com um trânsito menos estressado e mais seguro”, defende ela.
Os problemas que afetam os pedestres são variados, como calçadas em péssimas condições ou até mesmo inexistentes em algumas vias; falta de iluminação para deslocamentos noturnos; e caminhos áridos nos quais o calor torna proibitiva a caminhada.
A questão das calçadas, cuja manutenção é de responsabilidade de quem mora em frente à estrutura, é um debate antigo. E especialistas defendem a revisão da legislação para que o cuidado seja uma atribuição do poder público. “É fundamental superarmos a visão de que as calçadas são atribuições dos donos dos imóveis, pois eles veem as calçadas como vias de acesso a suas casas. Devemos enxergar as calçadas como vemos as ruas e ciclovias – são meios de mobilidade das pessoas”, afirma Sergio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e ex-secretário de Mobilidade e Transportes da cidade de São Paulo.
Os ciclistas compartilham das mesmas dificuldades que os pedestres, já que os pneus historicamente privilegiados no “tapete vermelho” das infraestruturas de qualidade são os dos automóveis. Essa exclusão tem resultados cruéis. Dados da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) mostram que, na última década, mais de 8,5 mil ciclistas morreram em acidentes de trânsito.
Nesse cenário, a expansão de estruturas cicloviárias torna-se urgente. Mais ciclovias e ciclofaixas resultam não somente no aumento da segurança para quem pedala pelas cidades, mas também servem como um convite a novos ciclistas.
Quando um motorista troca o carro pela bicicleta, colabora com a redução do trânsito e da poluição e, de brinde, melhora sua saúde física e mental. Porém, o processo de construir uma cidade para as pessoas implica reduzir o espaço dado aos automóveis, o que enfrenta resistência. Nesse embate, o uso de dados é fundamental para garantir o avanço das políticas cicloviárias.
“Cada viagem de bicicleta gera um dado, que compartilhamos com os órgãos de trânsito nas cidades em que a Tembici atua. Em São Paulo, a CET recebe constantemente pedidos de mudanças ou retiradas de infraestrutura para micromobilidade (sob alegação de que são pouco utilizadas)”, afirma Mariana Cruz, coordenadora de Relações Governamentais da empresa de compartilhamento de bicicletas. “Com nossos dados, mostramos como as infraestruturas são bastante utilizadas e as reclamações contrárias, infundadas.”
Cidade saudável
Com o isolamento social provocado pela covid-19, diversas áreas públicas e privadas ficaram vazias, o que serviu para a reflexão sobre novos usos que favoreçam a convivência e circulação de pessoas. “Na pandemia, vimos alguns estabelecimentos como padarias instalarem mesas e cadeiras nas vagas utilizadas para carros. Tais espaços passaram a ser áreas de convivência, se tornaram mais humanos”, comenta James Scavone, sócio-fundador e CCO da Davinci.
De forma geral, especialistas defendem que a melhoria da mobilidade ativa envolve repensar a forma como as cidades são construídas. Uma discussão que não deve estar restrita a universidades ou gabinetes do poder público. Cidadãos comuns, pequenos comerciantes e outros munícipes também podem ajudar a ressignificar os espaços.
“A especialização do profissional que pensa a cidade é uma barreira que precisa ser superada. A cidade é um campo de atuação interdisciplinar”, defende Vinícius Andrade, arquiteto e professor na Escola da Cidade.
Uma constatação é a de que o modelo adotado em São Paulo – com zoneamentos que estabelecem funções restritas de bairros e regiões – deve ser abolido das pranchetas de arquitetos urbanistas e dos gabinetes de gestores públicos.
“Quando se planeja a cidade, não se deve pensar em compartimentos monofuncionais, como áreas destinadas à moradia e outras às indústrias, o que gera deslocamentos em massa. Uma cidade saudável é compacta, de uso misto, mistura as atividades”, completa Andrade. E também estende o “tapete vermelho” a pedestres e ciclistas.
Pelo mundo afora, bons exemplos servem de inspiração
Investimentos para incentivar os modos sustentáveis de deslocamento crescem pelo mundo. Em Paris, estão previstos 250 milhões de euros em infraestrutura para bicicletas nos próximos anos, com a previsão de mais 180 quilômetros de ciclovias até 2026. Nova York pretende transformar 25% de seu espaço viário em áreas caminháveis, vias para bicicletas, faixas de ônibus e áreas verdes até 2025.
A cidade de Milão tornou público o compromisso de construir 750 quilômetros de ciclovias até 2035 e pretende zerar as emissões de carbono até 2050. E, no Reino Unido, uma parceria entre governo e empresas fornecerá gratuitamente empréstimos de bikes e triciclos elétricos por períodos de até três meses.
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