Não dê rosas pelo Dia Internacional da Mulher. Nada contra as flores. Eu amo flores, aliás. É que o 8 de março não é uma data como Dia das Mães ou do Amigo. Está no calendário para lembrar o tanto que ainda precisamos andar rumo à igualdade de condições, o quanto ainda é necessário dar oportunidade para as mulheres crescerem profissionalmente o ano todo.
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No setor de turismo, não é diferente. Somos o maior público-viajante e as que mais tomam as decisões de viagem nas famílias. Também somos o maior contingente da mão de obra que trabalha nas empresas do segmento no Brasil, mas poucas chegam a postos de comando. Globalmente, de acordo com a Organização Mundial do Turismo (OMT), 54% dos empregos do setor são ocupados por mulheres, que ganham menos que os homens nas mesmas posições.
Te faço um convite para hoje: pense em como ajudar a transformar essa realidade. Como inspiração, destaco aqui seis mulheres, que são, para mim, constantes fontes de informação e de reflexão. Sobre o turismo, sobre a sustentabilidade, sobre o futuro.
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As mulheres que eu escolhi para incluir nesta lista desempenham um expressivo papel em suas áreas de atuação dentro do turismo do Brasil. São fundamentais para o desenvolvimento consistente do setor. Existem muitas outras, é claro. Famosas ou não, contribuem passo a passo para o desenvolvimento dessa área da nossa economia, constantemente desconsiderada por governos e pela sociedade. Eu mesma conheço tantas, ainda bem.
Meu critério para falar destas 6 mulheres foi a relevância do trabalho delas. Isso posto e sendo este um espaço pessoal, faço uma observação: adoro como elas expressam a feminilidade com força. Usam acessórios, calçam sandálias. Nem sempre vestem pretinho básico. Esse não é um texto sobre moda, e pode até ter passado pela tua cabeça que é futilidade falar de mulheres no turismo mencionando o modo como se apresentam. Para mim, não é. Há anos esse fenômeno me chama atenção.
Pode até mudar de um campo de atuação para outro. No entanto, quantas de nós para sermos relevantes ou aceitas em cargos de poder encontramos um caminho 'se travestindo de homens'? Não apenas nas roupas, é fato. Também em atitudes pautadas pelo universo masculino do trabalho. Quando mais nova, sem perceber, fiz isso por anos, atuando em grandes empresas como tradutora e depois como jornalista. Mas esse é mesmo só um interessante detalhe.
Aproveitei meu ímpeto de escrever esse texto sobre elas para tentar descobrir por que ainda estamos longe de ver mais mulheres em postos relevantes dessa indústria no Brasil. Será que isso vem melhorando nos segmentos em que as 6 atuam? Vamos ver o que elas nos contam; abaixo em ordem alfabética:
Ana Cecilia Duék - Viagens sustentáveis
Ana é aquela figura necessária, que incomoda por tocar em assuntos que nem sempre a gente gosta de pensar. Engajada até no Carnaval, se fantasiou nesse último de SOS oceanos e Fora garimpo. Começou a estudar turismo sustentável em 2010, quando fez mestrado em Gestão de Turismo e Hospitalidade, na Middlesex University, em Londres. Atualmente trabalha o tema com empresas do setor no Brasil.
Além disso, a jornalista criou e escreve o Viajar Verde. Com o site, venceu a 1ª edição (2018) do International Travel & Tourism Award (ITTA), premiação da World Travel Market (WTM) Londres, na categoria Melhor Influenciadora Digital da Indústria.
A resposta da Ana à minha pergunta:
"As mulheres estão descobrindo, cada vez mais, como as viagens podem ser transformadoras, libertadoras e nos ajudam a entender nosso enorme potencial de realização, de adaptação e de conexões significativas. Ao viajarmos, estamos muitas vezes quebrando paradigmas que nos foram impostos durante séculos, e dar esse passo basicamente depende de nós mesmas.
Quando olhamos para o setor de turismo em geral (assim como em muitos outros), as barreiras impostas pelo machismo estrutural ainda estão sendo superadas muito lentamente. Empresas e destinos que estão trabalhando com práticas de sustentabilidade têm saído na frente. Isso porque a equidade de gênero está entre os pilares necessários da sustentabilidade. Temos visto isso claramente no turismo de base comunitária, em que muitas lideranças comunitárias são femininas, e também no ecoturismo e turismo de aventura, tradicionalmente nichos mais masculinos, mas nos quais muitas mulheres estão tendo a oportunidade de despontar como empresárias, guias e em outros papéis importantes.
Essa consciência social e de equidade que envolve quem trabalha com o turismo responsável e sustentável ainda precisa alcançar todo o setor. Sem dúvidas, temos profissionais incríveis no turismo, mas o trabalho delas ainda é muito mais árduo do que o dos homens para que elas consigam ocupar posições de destaque."
Bia Moremi - Afroturismo
Conheci a Bia em 2020, quando sugeri uma pauta para fazer uma reportagem sobre afroturismo. Quando o corretor ortográfico do computador me sugere mudar a última palavra da frase anterior para agroturismo, se tem a exata medida de como essa modalidade de viagem ainda precisa ser divulgada. Bia fundou a Brafrika em 2019, e já conseguiu o feito de ser a única agência de afroturismo na lista da Panrotas das 100 empresas mais poderosas do turismo nacional, se mantendo há 2 anos na seleção. Ela organiza roteiros como Maceió com Quilombo dos Palmares (novembro 2023), Semana de Moda Sul-Africana (outubro 2023) e Festival Afronation, em Portugal, com Paris (julho 2024).
Quando entrevistei a Bia para aquela capa do Na Quarentena, nome dado ao C2 do Estadão no início da pandemia, ela me explicou que misturava pontos turísticos com temas relacionados a história e cultura negras, sempre priorizando serviços de empreendedores negros na viagem. Sua empresa também oferece teste de DNA Afro, que pode apontar a ancestralidade vinda de até dez regiões da África e demais continentes.
A resposta da Bia à minha pergunta:
"O mercado de afroturismo é majoritariamente comandado por mulheres negras. De fato, é um setor que tem essa inserção maior da voz feminina, mas a maior empresa, a diaspora.black, ainda é liderada por homens. A gente vê algo que se repete muito na sociedade brasileira: você tem uma quantidade maior de mulheres fazendo aquela prestação de serviço, mas as empresas que tomam destaque, que têm maiores orçamentos, são lideradas por homens. Então a gente acaba, infelizmente, não fugindo dessa tendência ruim do mercado, do Brasil. Mas, em termos de quantidade, temos sim mais mulheres negras liderando e criando, encabeçando esse mercado."
Jaqueline Gil - Consultoria e marketing
Essa é outra grande mulher que descobri em 2020, quando eu fui atrás de ampliar minhas fontes para matérias sobre o setor de turismo. Queria muito ouvir alguém do Laboratório de Estudos de Turismo e Sustentabilidade, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (LETS/UnB), onde ela era pesquisadora e professora colaboradora. Desde então, Jaqueline ficou no meu radar para reportagens sobre tendências.
Fundadora da Amplia Mundo, consultoria especializada em inovação e planejamento de cenários em turismo e hospitalidade, ela tem o dom de trazer para a prática do mercado o que estuda na academia. Com a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa), criou o programa Academia de Experiências, para o setor desenvolver produtos com esse outro olhar. Num episódio do nosso Como Viaja | podcast de viagem, ela explica o que é turismo de experiência.
Já desenvolveu trabalhos na Nova Zelândia e na África do Sul. Em janeiro deste ano, Jaqueline assumiu a Diretoria de Marketing, Inteligência e Comunicação da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur). Ela tem a difícil tarefa de trazer mais estrangeiros para visitar o Brasil. Historicamente, nossos números não são relevantes. Em 2016, quando teve Olimpíada no Rio, foram 6,6 milhões de visitantes internacionais no país inteiro - apenas Nova York recebeu 12,7 milhões no mesmo ano.
A resposta da Jaqueline à minha pergunta:
"Acompanho com grande interesse o tema de mulheres conquistando mais espaço em postos estratégicos do turismo. Na Embratur, estamos muito atentos a isso. Um exemplo sou eu mesma. Ao ocupar uma das duas diretorias, recebi a demanda do presidente, Marcelo Freixo, de dar grande espaço às mulheres em nossos postos gerenciais. Na diretoria que lidera os programas de promoção internacional, de um total de 8 gerentes, 6 são mulheres.
Estamos fazendo nossa parte na Embratur. No entanto, sei que o caminho é longo para alcançarmos equidade em nosso país. Precisamos falar mais sobre isso, termos dados e ocupar espaços, com profissionalismo e personalidade."
Magda Nassar - Agências e operadoras
Durante a cobertura da feira internacional La Cumbre, em 2001, topei com a Magda no cassino do hotel em Las Vegas, nos Estados Unidos. Adorei as risadas daquela mulher se divertindo na roleta. Era meu primeiro ano como repórter no caderno de Turismo no Jornal da Tarde. Só depois fui entender quem era ela: a mulher mais poderosa do trade, como é chamado o mercado de agências e operadoras de turismo por quem é da área. De personalidade forte, a sócia da operadora Trade Tours não fala baixo, tem discurso firme e não deixa perguntas sem resposta.
Ex-presidente da Braztoa, por dois mandatos, Magda é a atual presidente da Abav, também reeleita para o biênio que termina em 2023. Após anos de negociação, junto com seus colegas do trade, conseguiu a aprovação pelo Congresso Nacional da Medida Provisória (MP) nº 1.138, que passa de 25% para 6% a tributação do Imposto de Renda (IR) sobre remessas de valores para pagamento de serviços turísticos no exterior.
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A resposta da Magda à minha pergunta:
"As agências e as operadoras são muito mais compostas por um universo feminino do que masculino. Nossa grande mão de obra é feminina, e a gente vê gerentes e diretoras. A verdade é que o machismo é tão estrutural no Brasil que as grandes lideranças são muito mais masculinas do que femininas, com um número muito maior de homens do que de mulheres. Nós sabemos que também as decisões de viagens são do público feminino, e a gente tem a mais absoluta certeza de que o desenrolar dos nossos passos tem de ser nesse caminho da igualdade, do entendimento, da clareza.
Que as mulheres não sejam só o chão de fábrica, só as lideranças ocultas, mas que elas sejam, sim, as lideranças visíveis. Porque todas as mulheres que estão nessa linha de frente do turismo fazem uma diferença abissal, principalmente nesse quesito do entendimento. Então a gente quer muito que esse momento não seja mais de comemorações desses lugares importantes em que as mulheres estão, mas que seja de normalidade, que a gente olhe e veja que nós somos iguais."
Mariana Aldrigui - Dados e economia do turismo
O turismo brasileiro, em geral, carece de dados, e a Mariana tomou para si essa importante missão. Outra bandeira da professora de Políticas de Turismo no curso de Lazer e Turismo da Universidade de São Paulo (USP) é apontar a importância econômica dessa atividade, infelizmente ainda subestimada por governos e pela sociedade em geral.
Na USP há 17 anos, ela desenvolveu o estudo Monitora Turismo, mapeando 571 atividades relacionadas ao setor, sendo 21 diretas, 191 compartilhadas, 142 indiretas e 217 aquecidas pelas viagens. Mariana também é presidente do Conselho de Turismo da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP) e, desde o fim de janeiro, gerente de Pesquisas e Inteligência de Dados na Embratur.
A resposta da Mariana à minha pergunta:
"Minha leitura sobre o desequilíbrio de gênero no turismo tem relação com o desejo de preservação do status quo das pessoas que estão nas posições de liderança, e da percepção (distorcida) de que as mulheres não deveriam estar ali, por diferentes motivos - competência, disponibilidade, clubismo etc. Para além do que já está documentado sobre as vantagens da diversidade, já é possível perceber que as empresas (e os países) lideradas (os) por mulheres tiveram desempenho acima da média durante as crises vinculadas à pandemia.
Na academia, a situação é muito similar: muito mais mulheres na graduação, equilíbrio na pós, mas um profundo desequilíbrio nos quadros docentes e nas posições de direção das unidades e da universidade como um todo. Nas pesquisas e inteligência de dados, eu vejo cada vez mais mulheres jovens se interessando pelo setor, mas muitos dos meus pares hoje são homens, especialmente aqui no Brasil. O desafio é convidar mais 'meninas' para a área de exatas e programação, o que parece que vem sendo feito nas escolas.
Em resumo, vejo avanços, mas muito lentos em comparação ao que eu gostaria, e sinto muita resistência à mudança junto aos empresários do setor."
Simone Scorsato - Hotelaria e luxo
Simone é a própria cara do luxo na atualidade, que defende autenticidade e sustentabilidade acima de ostentação. Reeleita como CEO da Brazilian Luxury Travel Association (BLTA) até o fim de 2024, ela atua há dez anos na organização, composta por hotéis e operadoras de turismo de luxo e fundada em 2008. Simone roda o Brasil e o mundo, promovendo os associados entre os viajantes brasileiros, para manter a demanda interna aquecida como ocorreu após a pandemia, e nos mercados internacionais, para atrair mais estrangeiros em busca de experiências marcantes e de excelência no serviço. Ela ainda desenvolve um belo trabalho como ceramista.
A resposta da Simone à minha pergunta:
"Sim, ainda há muito espaço para se conquistar. Acho que hospitalidade é um setor feminino que trabalha para bem receber o outro e as mulheres na sua maioria estão em cargos operacionais. Mas temos, sim, muitas mulheres em posição de liderança."
QUEM FAZ
Nathalia Molina viaja desde os 5 anos, adora café da manhã e aprecia um bom serviço no turismo. Essencialmente urbana, também tem seus dias de paisagem natural. É jornalista de viagem há 20 anos e ganhou 4 vezes o prêmio da Comissão Europeia de Turismo. Em 2011, criou o Como Viaja: acompanhe no Instagram @ComoViaja e em comoviaja.com.br
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