Recentemente, tanto na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, quanto, em especial, na reunião bilateral com o chefe de Estado norte-americano, Joe Biden, mereceram destaque nos discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a cobrança quanto ao cumprimento do propósito de combate à desigualdade, bem como a profunda reflexão que fez sobre o neoliberalismo como uma das fontes da indignidade de vida de milhões em todo o planeta. O tempo urge, disse Lula, e a Agenda 2030 exige que os objetivos de desenvolvimento sustentável saiam da caminhada em ritmo lento em que se encontram.
De nossa parte, no Brasil, em favor da importância de ações de inclusão que competem a todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), não é desprezível o resultado que, por exemplo, as ações governamentais, a legislação e os precedentes de nossa Suprema Corte acerca da constitucionalidade e necessidade de políticas de ação afirmativa na educação, tiveram (e têm) em termos de mobilidade social e de disputa de poder por parte de jovens negras e negros brasileiros.
“Cotas abrem portas” é fato. Mas, no âmbito judiciário, se de um lado as cotas foram jurisprudencialmente consideradas como legítimas, constitucionais e necessárias, ainda estão distantes do alcance da maioria do povo preto e pobre as chaves que abrem as portas de uma Justiça “mais justa”.
Corpos negros de jovens e crianças tombam em quase incontáveis chacinas Brasil afora. Mães e pais choram seus mortos enquanto a impunidade graça. Assim como, de outro lado, nesta mesma quadra da história política e econômica brasileira, são perceptíveis os resultados da destruição do sistema de proteção social do trabalho, da emergência do discurso do “empreendedorismo” e da afirmação da meritocracia. Precarização, redução à condição análoga a de escravo, uberização tornaram-se a realidade de milhares de trabalhadores que também têm gênero e cor.
O cenário é complexo, admito. Mas, como tornar a Justiça “mais justa”, mesmo em um país marcado pela desigualdade, o patriarcado e o racismo estrutural como é o Brasil, não é propriamente uma pergunta de 1 milhão de dólares.
Na linha do que disse o presidente Lula à comunidade internacional, ouso pensar que, no que se pode esperar do poder Judiciário, parte da resposta seria que a “Justiça” brasileira extrapolasse os limites dos direitos individuais e tomasse de modo amplo a tarefa de “(...) fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias”, (OBS 16 – 16.b) tendo o objetivo de erradicação da marginalização social como um verdadeiro parâmetro interpretativo de atos e normas que dizem respeito também ao trabalho digno, à saúde, à educação, à moradia e à terra.
“Nunca antes na história desse país” as questões estruturais que envolvem classe, gênero e raça estiveram tão conectadas. E nosso futuro depende de reconhecermos essa realidade, pois como nos ensina o prof. Silvio Almeida: “Não existe, nem nunca existirá respeito às diferenças em um mundo em que pessoas morrem de fome ou são assassinadas pela cor de sua pele.” Ao que, acrescento eu, ao final, ou por serem mulheres, em especial, mulheres negras.
Tornar a Justiça “mais justa” é imperativo. Algo que, quiçá, possa vir a compor, como anunciado pelo presidente Lula na Assembleia, o décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente para alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira. #ficaadica
*Soraia Mendes é jurista, advogada, professora, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB), mestra em Ciência Política (UFRGS), com atuação e obras reconhecidas no Supremo Tribunal Federal e na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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