Mapeamento sigiloso feito pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública e obtido pelo Estadão mostra que há pelo menos 72 facções criminosas nas prisões brasileiras. A análise leva em conta informações enviadas pelas agências de inteligência penitenciária dos 26 Estados e do Distrito Federal.
O relatório revela o alcance dos rivais Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), presentes em quase todos os Estados, e a pulverização de grupos locais - uma rede de alianças e tensões que frequentemente resulta em rebeliões sangrentas.
Para especialistas, as cadeias são “escritórios do crime”, de onde líderes traçam planos e enviam ordens para as ruas. E, com o controle falho pelo poder público e em condição precária, são espaços para cooptar novos integrantes, que entram como detentos comuns e viram parte do exército da facção.
“Um ambiente prisional superlotado, sem controle dos procedimentos, com forte presença de celulares, ou seja, um ambiente em desordem em que o Estado não controla as ações, propicia espontaneamente o surgimento dessas Orcrims (organizações criminosas) iniciais dentro do sistema penal”, admite trecho do relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
A análise identifica desde facções locais, com articulação restrita a bairros, distritos ou região metropolitana; aos dois grupos nacionais, com incidência em todo o País e nos vizinhos.
- O PCC atua nos presídios de ao menos 23 Estados.
- Conforme a análise, cerca de 70% dos detentos membros de organizações criminosas de São Paulo estão vinculados ao PCC.
- Já o Comando Vermelho aparece em ao menos 20 Estados e também domina 70% dos integrantes de facções no Rio.
O trabalhou envolveu 141 relatórios das agências estaduais de inteligência com base em triagem feita pelos policiais, segundo protocolos indicados para identificar facções, mantidos em sigilo. São consideradas como de alto impacto no sistema penitenciário 21 facções.
“Os presos passam a se autogovernar nos presídios. O fenômeno das facções e o modelo de negócio do PCC, que até 1990 era mais restrito a Rio e São Paulo, começa a se espalhar pelo Brasil porque é um modelo bem sucedido”, diz Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o País tem 683 mil detentos nas prisões, em celas estaduais e nas cinco unidades mantidas pela União. Em fevereiro, a fuga inédita na Penitenciária Federal de Mossoró (RN), unidade de segurança máxima, expôs nova deficiência do sistema.
Rogério Mendonça e Deibson Nascimento, apontados como membros do CV, usaram um buraco de luminária na cela e barras de ferro para escapar, como mostrou o Estadão.
A busca pelos foragidos se arrasta há duas semanas, com uso de cerca de 600 agentes de segurança. Ao Estadão, o secretário Nacional de Políticas Penais, André Garcia, afirmou que a fuga é um episódio atípico.
“Não é o padrão de segurança do sistema prisional. E todos procedimentos e protocolos foram retomados, inclusive em Mossoró. O que havia de fragilidade foi resolvido”, diz.
O relatório, prossegue ele, ajuda a nortear ações e evitar rebeliões. “O mais importante de ter conhecimento da existência dos grupos organizados é trabalhar isso sob o ponto de vista de segurança e inteligência: separar adequadamente (os presos), fazer classificação penal como tem de ser feita.”
- Também há um balanço sobre as ações mais cometidas pelas facções: atentados contra o patrimônio (33%) ou contra servidores (17%); resgate de detentos em presídios (9%); motins (5%); e resgate de presos em escoltas (4%). As ocorrências, porém, não são detalhadas.
Rafael Velasco chefiava a Senappen quando o relatório foi produzido, em 2023. “As inteligências dos sistemas penitenciários eram desarticuladas, pequenas ilhas que funcionavam para dentro. O que fizemos foi disseminar metodologia, uma rede de comunicação para trocar informações entre os Estados e entender que as facções funcionam em rede”, disse ao Estadão.
Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Velasco defende a ressocialização de detentos, com oferta de profissionalização dentro do presídio, para afastá-los das organizações.
“As facções são um grande câncer no sistema prisional. Não falar, não estudar e não tratar objetivamente esse tipo de organização criminosa dentro do sistema é padecer desse mal”, afirma. “Diversas unidades prisionais são comandadas muito mais por facções do que pelo Estado.”
O relatório sugere cinco medidas para reduzir a força das facções nos presídios. A primeira é ampliar a capacidade do sistema. Dados do CNJ dão o tamanho do desafio: o déficit é de cerca de 191 mil vagas.
Além disso, recomenda criar um procedimento-padrão dentro das prisões; fiscalização de presos no semiaberto e aberto por meio de monitoramento eletrônico; oferta de trabalho e educação e integração das forças policiais para combate ao crime organizado.
Prisões como escritório
As facções têm origem no sistema prisional. Após o Comando Vermelho surgir no Rio nos anos 1970, o modelo cresceu e chega a São Paulo, com o nascimento do PCC em 1993.
Com o crescimento do déficit de vagas nos presídios, houve aumento desses grupos, influenciando o surgimento de organizações locais. Isso porque, com a superlotação, os detentos passaram a operar uma espécie de autogestão.
”Tornam as prisões uma espécie de escritório. Têm ascendência sobre quem está do lado de fora, que sabe que em algum momento pode passar pela prisão. E se for mal visto pelas lideranças, terá de cumprir sua pena ameaçado”, descreve Paes Manso.
O relatório da Senappen mostra a incidência de 57 facções classificadas como “locais” no sistema. Na prática, segundo especialistas, elas se aliam a grupos maiores para dar fluxo aos negócios e se impor diante de outras facções, mas criam estruturas semelhantes, com profissionalização e regras próprias.
“O modelo acaba bem sucedido, principalmente, depois da construção dos presídios federais em 2006. Começa o intercâmbio entre presos de diferentes Estados, que levam esse modelo de governança para os outros Estados″, diz Paes Manso. As cinco prisões federais recebem líderes de facções, a pedido dos Estados, como Marcola (PCC) e Fernandinho Beira-Mar (CV).
Rota de tráfico na Amazônia e profissionalização das facções locais
Com a profissionalização desses grupos, começa a disputa por rotas do narcotráfico. Em 2015, quando PCC e Comando Vermelho intensificam a venda no atacado, as duas facções abrem guerra pelos corredores de escoamento, principalmente a “Rota caipira”, que passa pelo Centro-Oeste e o interior paulista. Com isso, o CV busca alternativas no Norte, e passa a operar a rota amazônica.
- Segundo relatório da Senappen, atuam nas prisões do Norte 14 facções, entre elas PCC, Comando Vermelho, Revolucionários do Amazonas, Cartel do Norte, Família Terror do Amapá.
A partir do domínio da rota amazônica por organizações de peso, como o Comando Vermelho, e a chegada de integrantes dessas denominações nas cadeias da região, os grupos locais se profissionalizaram.
“Nos anos 1970 e 1980, já havia tráfico de drogas no Norte. Mas a partir dessa guerra, marcada pelas rebeliões nas penitenciárias (em 2017, quando rebelião em uma prisão de Manaus teve 56 mortos), vêm as facções do Sudeste”, diz Rodrigo Chagas. professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
“Esses grupos eram mais organizados, com armas pesadíssimas, rede estabelecida com narcotráfico internacional e buscaram na Amazônia novas rotas”, completa ele, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
PCC x Comando Vermelho
Após a guerra pelas rotas de tráfico em 2015, marcada por rebeliões sangrentas nos anos seguintes, PCC e Comando Vermelho começam a entrar em um período de relativa trégua. Antes desse episódio, o mercado interno brasileiro era abastecido principalmente com a cocaína boliviana, que chegava ao País pela Rota Caipira. A abertura de uma nova frente de tráfico no Norte descentralizou a distribuição.
“Como as rotas não coincidem mais, há certa acomodação do conflito entre PCC e Comando Vermelho”, diz Daniel Hirata, coordenador do Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).
“Isso ajuda a entender porque desde 2017 há queda dos homicídios no Brasil. Ela é muito mais associada a esse momento do que qualquer política pública”, complementa.
Em 2017, houve um pico de homicídios no País devido à guerra entre PCC e Comando Vermelho. A partir de 2018, há tendência de queda, com aumento apenas em 2020, teve comportamento atípico diante do início da pandemia.
Balanço mais recente do Fórum de Segurança Pública aponta que em 2022 o Brasil registrou 47.508 assassinatos, o segundo menor número desde 2011. Mas estudo feito pelas Nações Unidas mostra o Brasil ainda com taxa de 21,3 homicídios a cada 100 mil habitantes, três vezes maior que a média mundial (5,8).
Para Hirata, da UFF, é importante apostar na desarticulação política e econômica das facções. Os grupos criminosos têm conseguido, por exemplo, se infiltrar na administração pública.
Como revelou o Estadão, empresas de ônibus que mantêm contratos com a Prefeitura de São Paulo têm diretores investigados por suposta participação em crimes ligados ao PCC.
Do uso de igrejas de fachada à criação de contas em bancos digitais, o PCC também diversificam as estratégias de lavar dinheiro para esconder ganhos obtidos com o tráfico e driblar a polícia.
“É importante dar condições que hoje só as facções oferecem nas prisões: segurança, apoio, tratamento um pouco mais justo, proteção a quem está lá dentro. Isso ajudaria a reduzir o poder efetivo das facções sobre a população prisional”, afirma Hirata.
Ele defende ainda políticas para evitar o encarceramento em massa e medidas de progressão de pena.
Estados dizem atuar contra o crime organizado
A reportagem procurou as secretarias de Administração Penitenciária dos três Estados com maior número de presos.
Com cerca de 195 mil detentos, São Paulo afirma combater “diuturnamente” o crime organizado, com ações de inteligência e colaboração com as forças de segurança.
A Secretaria da Administração Penitenciária informa ainda ter parcerias com o governo federal que incluem troca de informações, conhecimento e tecnologia. E disse que não detalharia as ações por questão de segurança.
O governo de Minas Gerais, que tem a 2ª maior população carcerária (66,2 mil), afirma identificar os declarados pertencentes a organizações criminosas, incluindo monitoramento dentro das prisões.
O Estado diz ainda atuar no combate a grupos criminosos de forma contínua, independentemente de projetos específicos da União.
O Rio de Janeiro, cuja população carcerária é de 47,6 mil, não respondeu.
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