As relações entre a máfia italiana ‘Ndrangheta e os traficantes brasileiros do Primeiro Comando da Capital (PCC) estiveram a ponto de ser rompidas em razão do sumiço de um carregamento de cocaína embarcado em Santos para o Porto Gioia Tauro, na Calábria, no sul da Itália. A cocaína simplesmente sumiu. Para os italianos, tudo levava a crer que os brasileiros haviam enganado os mafiosos.
Era 20 de janeiro de 2020. No sistema Sky ECC de mensagens criptografadas, os homens da ‘Ndrangheta criaram o grupo 63B81A:44. Queriam facilitar a comunicação para importar um carregamento de cocaína que chegaria em breve. “Ciao, amici (oi amigos)”, escreveu o mafioso Francesco Perre. Começava ali a história que fez um chefão ameaçar dinamitar um navio para encontrar a droga.
Naquela noite, outro mafioso, identificado como El Regreso, explicava aos outros integrantes do grupo como tudo seria feito em Gioia Tauro. O trabalho para reaver a droga embarcada no Brasil incluiria câmeras. Iam fazer um vídeo.
O bandido pede informações ao chefão Rocco Morabito. “Pode me dizer onde precisamente está (a droga)? Se está na tubulação da popa ou da proa?” O Estadão não localizou as defesas de Perre e da família Morabito.
Perre e El Regreso estavam atrás das embalagens com a cocaína que haviam sido colocadas em um navio no Brasil por traficantes do PCC. Morabito, então, diz que elas estavam amarradas umas às outras na popa da embarcação.
A operação para recuperar a droga deveria demorar uma hora e meia. Quando o trabalho fosse terminado, a equipe enviaria imagens da droga para Morabito, que controlava tudo a distância.
No dia seguinte, às 15h51, Perre mandou mensagem para El Regreso, afirmando que estava tudo pronto para começar o resgate. “Mais tarde estaremos nos postos de combate”, respondeu El Regresso. Às 20h36, El Regreso contou no grupo que tudo dera errado. “São uns bastardos de m... Não tinha nada! Isso não se faz!”.
Os mafiosos vasculharam todas as tubulações e compartimentos em busca da droga, mas não encontraram nada. Carmelo Morabito, sobrinho de Rocco, entrou então em contato com seu tio por meio do criptofone e contou o que aconteceu. Este questionou o mergulhador do PCC responsável por colocar a droga no navio, identificado como Fábio, que respondeu.
“O material está amarrado na tubulação dentro da caixa de mar do lado esquerdo, na popa e não na caixa de incêndio. Ok?” Diante da explicação, o chefão mandou a equipe de mergulhadores retornar ao navio para apanhar a droga. “Tira-se a grade do lado esquerdo da popa e entra. São oito bolsas. Deveremos abrir e localizá-las.”
Às 5h13 do dia 22 de janeiro, uma surpresa. Quando os mergulhadores voltaram ao porto, não encontraram mais o navio. Ele havia zarpado. “Veja em qual porto ela vai parar”, ordenou Rocco Morabito. Era um engano. Na verdade, o navio iria permanecer em Gioia Tauro até 23 de janeiro. Os mergulhadores voltaram ao porto e mandaram fotos no chat para provar o que diziam.
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Às 18 horas, fizeram nova tentativa de resgate da droga. “‘Compa’ estou com os sub. Às 18h, estaremos na água”, escreveu Pedro, que usava o código Q78NJF. Ao que o chefão Rocco respondeu. “E não se preocupem em fazer vídeo... Não me interessa o vídeo. E se for preciso um pouco de dinamite e que tudo vá pro espaço... Porque não aguento mais esse stress. Se perdermos esse trabalho é o fim. E não haverá uma próxima. Ontem, acreditei em vocês e fiquei nervoso com o brasileiro.”
Rocco Morabito acreditava que a droga estava ali, no navio, pois nenhuma notícia sobre sua apreensão havia sido publicada no Brasil. Mas a droga novamente não foi encontrada.
Carmelo então recomendou ao tio pedir seu dinheiro de volta. Para Morabito, era possível que seu contato no Brasil também tivesse sido enganado. Os mergulhadores italianos queriam, mesmo assim, receber. Carmelo acreditava que o traficante que se identificava como Poseidon tivesse enganado todos.
Poseidon era o codinome usado por um bandido do PCC no sistema de mensagens criptografadas Sky ECC. Foi ele quem encomendou 400 fuzis AK-47 para a facção. As armas viriam do Paquistão e seriam trocadas por drogas. “Fomos enganados por esse tal de Poseidon”, concluiu Carmelo.
No último dia 29 de outubro, o escândalo da Sky ECC levou à condenação de 116 dos 125 acusados de operar uma rede de tráfico de drogas no Porto de Antuérpia, na Bélgica. Segundo os investigadores, os mafiosos usavam criptofones tchecos para comunicação. Esses aparelhos impedem que a conversa seja rastreada por terceiros. Além de traficar drogas e armas para as Américas, Europa e Austrália, eles mantinham contatos com grupos chineses para movimentar recursos e lavar dinheiro.
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