Pagu Vulcao, de 24 anos, artista visual e tarólogo, nunca se identificou completamente com as roupas e o comportamento que a sociedade esperava que ele tivesse por ter nascido com vagina e, por isso, ter sido identificado socialmente como menina. Seu desejo sexual também não acompanhava as expectativas alheias e, na adolescência, ele se assumiu como bissexual – que sente atração tanto por homens, quanto por mulheres –, mas não foi o suficiente para definir a complexidade da sua identidade.
Foi aos 20 anos que, após ter contato com debates mais profundos sobre gênero, Pagu conheceu as teorias queer e se entendeu como pessoa transgênero não binária e fluida – termo usado para definir pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento e nem se enxergam estritamente como homem ou mulher, mas transitam entre esses dois espectros.
A partir disso, ele começou a adotar pronomes masculinos para se identificar – pois entendia esses pronomes como neutros, conforme a norma culta da língua portuguesa – e se viu livre para se vestir, agir e ser quem de fato ele é.
Assim como Pagu, muitas outros, em especial jovens, têm se aberto para discussões sobre gênero e sexualidade e entendido os dois como coisas distintas e complexas. Há poucas semanas, o apresentador Tadeu Schmidt falou sobre a relação com a filha Valentina Schmidt, de 20 anos, após ela ter se assumido como pessoa queer. “Minha filha continuou sendo a mesma”, disse ele. Em julho, a jovem disse no Instagram que estava feliz em ter liberdade para falar abertamente sobre sua sexualidade.
Não à toa, a sigla que inicialmente era para lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) cresceu nos últimos anos. Primeiro, foi acrescentado um Q, de queer, depois um I, de intersexo, e um A, de assexuais. Por fim, entendeu-se que esse é um tema em constante construção e, por isso, foi adicionado um “+” à sigla, representando a infinidade de possíveis definições de gênero e orientação sexual e o acolhimento do movimento a todas elas.
“Estamos em uma constante construção e atualização de conceitos em busca de entender a complexidade do ser humano”, afirma a psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Alícia Beatriz Dorado de Lisondo.
A teoria queer
Segundo o sociólogo e professor da Unifesp Richard Miskolci, queer é um conjunto de teorias, estudos e políticas que se contrapõem à definição de gênero e orientação sexual.
O movimento social hegemônico e a maioria dos estudos feitos até hoje sobre sexualidades se baseiam em identidades, enquanto o queer é um contraponto crítico a elas.
Richard Miskolci, sociólogo especialista em teorias queer e professor da Unifesp
Segundo ele, nunca houve linearidade férrea entre sexo, gênero e desejo. “A expectativa de que uma pessoa que foi definida ao nascer como homem seja necessariamente um adulto masculino e se interesse sexualmente por mulheres é a reprodução de um estereótipo, uma atitude irrefletida que, quando confrontada pela realidade cotidiana, se transforma”, diz.
Com base nessa perspectiva, o movimento queer ganhou força principalmente no fim dos anos 1980, durante o auge da epidemia de Aids e a ascensão do neoliberalismo. “Acadêmicos e parte minoritária do movimento social feminista e homossexual começaram a refletir sobre o papel do desejo nas relações sociais e formas alternativas de compreender as desigualdades e injustiças na esfera das sexualidades e dos gêneros”, diz Miskolci.
Em meio àquele contexto histórico, afirma, ficou nítido que “marcar” pessoas pelo seu gênero e sua orientação sexual faz com que quem não se enquadre nas identidades padrão fique excluído e invisível, o que implica no não desenvolvimento de políticas públicas que considerem as especificidades desse grupo.
Por isso, o professor afirma que “o que chamamos de queer é uma vertente de estudos e uma perspectiva política crítica em relação às identidades como via para construir conhecimento ou demandar direitos (para pessoas que não se enquadram em padrões socialmente impostos)”. Como possível solução, os teóricos queer defendem a não definição de gênero e orientação sexual – assim, as pessoas seriam vistas apenas como seres humanos, iguais.
Na prática
Para Pagu, a ideia de abolição de gênero é uma utopia. “Seria ótimo se o meu sexo feminino biológico fosse realmente só o sexo com o qual nasci e eu pudesse chegar para as pessoas e falar só ‘eu sou uma pessoa’, mas essa não é a realidade. Se eu disser que sou uma pessoa, sem falar explicitamente o que sou, as pessoas apenas vão me assumir e me tratar como mulher”, diz.
O artista acredita que, na prática, definir sua identidade de gênero em um mundo que ainda funciona com base em gêneros é essencial para ser reconhecido e lutar pela garantia dos seus direitos. Afinal, a partir do momento em que a pessoa se identifica, passa a se entender melhor e consegue explicar quem ela é para outras pessoas.
Quanto ao reconhecimento de novas orientações sexuais, o objetivo é tentar abarcar também a complexidade de desejos que alguém pode ter. Alguns exemplos são a demissexualidade, que define pessoas que só sentem atração por pessoas que elas conhecem e gostam, e a assexualidade, quando não sentem atração sexual independente do gênero e do sexo do possível parceiro.
Em síntese, a linguagem tem papel importante para pessoas LGBT+ porque é como se aquilo para o qual não existe uma palavra ainda não existisse. Criar novos termos para definir identidades de gênero e orientações sexuais que fogem do padrão heteronormativo e binarista (de dualidade em relação a masculino e feminino, homem e mulher) são como uma afirmação de existência.
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Identidade e autoconhecimento
Rô Vicentte, de 26 anos, artista e influenciador digital, concorda com Pagu em relação à importância da identidade levando em conta o mundo como ele é. “Desde que nascemos, já somos vistos e criados como homem ou mulher heterossexual”, diz. Então, para quebrar essa regra, a gente precisa fazer a nossa.”
Para além de se posicionar perante a sociedade, afirmar a sua identidade de gênero pode ser importante para se autoconhecer. “É fundamental poder responder para si próprio quem se é. Poder estar confortável em seu próprio ser é uma questão básica para o desenvolvimento da personalidade”, diz Alícia Beatriz de Lisondo.
Nesse sentido, tanto Pagu quanto Rô dizem que conhecer e escutar o que outras pessoas trans tinham a dizer foi fundamental para que entendessem a si próprios. É uma questão de alteridade: quanto mais a pessoa enxerga o outro e entende que há outros tipos de identidade de gênero e orientações sexuais, mais reflete sobre si mesma, analisando semelhanças e diferenças.
“Se eu não tivesse conhecido pessoas trans e o conceito de não binariedade, talvez eu nunca tivesse me entendido”, diz Pagu. “Para mim, ser queer é buscar entender quem sou para além das identidades padrão da sociedade”, diz Rô.
Para mim, ser queer é buscar entender quem eu sou para além das identidades padrão da sociedade.
Rô Vicentte, artista e influenciador digital que se define como pessoa não binária fluida
Relação com o corpo
A relação com o corpo também é um ponto sensível para pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento. Pagu conta que nunca se sentiu confortável com os seus seios por eles reforçarem o estereótipo de gênero feminino. Por isso, muitas vezes, usa roupas e acessórios que os escondem.
Conforme Alícia Beatriz, é fundamental para o ser humano não só se sentir confortável em poder admitir quem se é, mas também ter boa relação com o seu corpo, desde que a pessoa “entenda as limitações da condição humana”.
Pagu entendeu isso com o tempo. “Hoje, lido melhor com a minha expressão de gênero. Sei quem sou, mas sei também que, às vezes, as pessoas me leem de maneiras que não posso controlar. Saber que não posso controlar o que os outros pensam é essencial para que não me torne refém de estar sempre preocupado com o que os outros pensam”, conta.
Outro ponto importante, diz a psicanalista, é em relação a decisões quanto a cirurgias e uso de hormônios, em especial na adolescência. Para ela, é importante que decisões como essas, que podem ser irreversíveis, sejam tomadas após longo processo de autoconhecimento e amadurecimento.
“Faz parte da adolescência a pessoa perder o corpo infantil e ter que assumir um novo corpo que está passando por mudanças fisiológicas. Nesse contexto, é possível que o adolescente não se reconheça nesse corpo que permanentemente se transforma, mas pode ser um momento passageiro”, explica.
No Brasil, o uso de bloqueios e terapias hormonais pode ser feito a partir dos 16 anos, mas menores de idade precisam comprovar acompanhamento psicológico de anos e autorização dos pais. A cirurgia de redesignação sexual só é permitida a partir dos 18 anos.
Ambos os procedimentos estão previstos no Sistema Único de Saúde (SUS) – nos dois casos, no entanto, a idade mínima exigida é de 18 anos.
Choque de gerações e culturas
Para quem nunca teve contato com discussões sobre gênero e orientação sexual alternativas, esse pode ser um tema bastante complexo. Rô conta que apesar de sua mãe sempre ter respeitado suas características e orientação sexual, ela enfrentou dificuldades para entender os conceitos por trás do não binarismo. “Assim como a bissexualidade, o não binarismo também tem essa ambiguidade que pessoas acostumadas com os padrões heteronormativos têm dificuldade em entender”, diz.
Mas, apesar do choque de gerações e culturas, isso não deve ser justificativa para atitudes preconceituosas. “É importante não simplificar ou banalizar o que se passa com o jovem e buscar entendê-lo“, reforça a psicanalista. “Se os pais não se sentem confortáveis com a situação, se não há diálogo construtivo, mas sim perturbação e excesso de angústia, eles podem procurar um psicanalista para entender onde está o ruído na comunicação e por que existe tamanho desconforto”, aconselha.
Assistir a filmes e documentários e ler sobre o assunto pode ajudar os pais a entenderem melhor sobre o que o seu filho está passando. Além disso, é importante respeitar a pessoa LGBT+ por meio da linguagem. O ideal é perguntar como ela se identifica e apresentá-la dessa forma antes de assumir sua identidade de gênero e sua orientação sexual com base em estereótipos e padrões sociais.
Na dúvida, o melhor é perguntar como a pessoa prefere ser tratada, se no feminino, masculino ou no gênero neutro. Algumas pessoas do movimento LGBT+ defendem a adaptação da língua portuguesa a um gênero neutro, em que o “a” e “o” do final dos pronomes são trocados por “u”, “e” ou “x”, como: “elu”, “minhe” e “queridxs”. Dessa forma, seriam evitados constrangimentos por uso incorreto de pronomes femininos ou masculinos.
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