Os mais de US$ 40 bilhões gastos em infra-estrutura, as 51 medalhas de ouro da China, os milhares de turistas e as tantas outras cifras fantásticas da Olimpíada de Pequim ofuscaram um debate que o Ocidente esperava travar, mas não conseguiu ou achou melhor deixar para lá: o debate sobre a liberdade de imprensa e o respeito aos direitos humanos no país asiático. A China fez uma Olimpíada com o claro propósito de se consolidar no "clube dos ricos", para mostrar que superou as humilhações das derrotas nas guerras coloniais do Ópio (onde perdeu Hong Kong para a Inglaterra) e na ocupação japonesa. Nos meses que antecederam a Olimpíada, as potencias ocidentais até chegaram a ensaiar uma resistência à revanche chinesa. O Ocidente se muniu de argumentos e acusações para um confronto no campo das idéias. Organizações Não-Governamentais fizeram protestos e lançaram relatórios denunciando a opressão às minorias, a prisão de dissidentes, a falta de liberdades individuais e a censura da imprensa na esperança de precipitar uma onda de transformação na China. Líderes políticos fizeram discursos e tentaram capitalizar a indignação da opinião pública ocidental com a repressão aos seguidores do Dalai Lama e o banimento de jornalistas do Tibete. Passados alguns meses, líderes ocidentais vieram a Pequim, esqueceram a retórica que vociferaram em março e foram recebidos pelos chineses com gracejos, tapete vermelho e hospitalidade. Acabaram adotando uma postura simpática e educada. Barrados As ONGs não se deram por satisfeitas. Acreditaram que poderiam montar um embate político com a China e usar os Jogos como argumento para pressionar por mudanças, mas foram barradas na porta. Sem visto de entrada, entidades como a Anistia Internacional e Human Rights Watch se aquartelaram em Hong Kong gritando de fora da festa para um povo e uma elite que não tem interesse (nem tempo) de ouvir falar de direitos humanos. Absorvidos pela atmosfera olímpica e as tentações de consumo na China, os ocidentais que participavam da comemoração lá dentro não prestaram atenção às ONGs. Com os chineses, a pregação tinha ainda menos chance de colar: eles estão muito ocupados vivendo a glória de se tornarem ricos, e a sensação nas ruas é de que nunca se teve tanta liberdade neste país. Liberdade à chinesa Na China, liberdade não é direito a voto ou acesso à informação. Liberdade é poder comprar o que der vontade, poder tentar montar o próprio negócio, poder migrar do interior para a cidade e mandar dinheiro de volta pra família construir a casinha dos sonhos. Alguns chineses ainda estão de fora do milagre econômico, mas aguardam com fé na fila, pois foi isso que o partido comunista prometeu: que todos poderão prosperar, embora alguns mais cedo que os outros. O povo sente que tem em mãos a chance concreta de "dar certo na vida" e não vai arriscar isso pelo que muitos aqui consideram uma idealização romântica chamada democracia, um conceito que muitos desconhecem nos pormenores. Nesse contexto, a Olimpíada foi um sucesso retumbante de propaganda do Partido Comunista. Mobilizou e uniu a nação em torno de um objetivo comum que foi conquistado aos olhos dos chineses: o respeito do Ocidente. Leste e oeste interagiram com dignidade diplomática concretizando as expectativas de uma celebração em "harmonia". O povo está ainda mais confiante da sua capacidade de prosperar, e o Partido Comunista ganhou ainda mais moral. O que a Olimpíada mudou na China? Além da arquitetura e o código de etiqueta em Pequim? Provavelmente muito pouco. Com o fortalecimento do nacionalismo, a China talvez esteja ainda mais chinesa. Talvez, o maior legado tenha ficado para o Ocidente, que teve um choque de realidade e agora começa a encarar seriamente a possibilidade de ter de tratar como igual o país que antes acusava de ignorar os direitos humanos e a liberdade de imprensa. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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