Órgão federal que alerta sobre chuvas e mais desastres tem déficit de equipe e orçamento estagnado

Ministério Público Federal abriu procedimento para apurar condições estruturais; governo federal diz ter repassado R$ 82 milhões via PAC para fortalecer o órgão

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Foto do author Paula Ferreira
Atualização:

BRASÍLIA - O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) bateu recorde de alertas emitidos em 2024. No total, foram 3.622 avisos. Apesar disso, o órgão federal trabalha só com 96 servidores e orçamento que não sai da casa dos R$20 milhões desde 2019.

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O Brasil tem enfrentado eventos climáticos extremos emblemáticos, como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul e a seca recorde que castigou a Amazônia. Em janeiro, São Paulo também sofreu com tempestades que alagaram ruas, estações de metrô e a Marginal Tietê. A limitação de equipes e de recursos do centro, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), virou alvo de apuração do Ministério Público Federal (MPF).

Ao Estadão, o Cemaden afirmou que “em nenhum momento deixou de cumprir com suas missões”. Mas afirmou que ao longo dos anos, a estrutura sofreu defasagem (leia mais abaixo). O órgão disse ter pleiteado mais recursos e destacou repasse previsto de R$ 82 milhões via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O ministério encaminhou à reportagem a mesma nota enviada pelo Cemaden. Já a pasta do Planejamento direcionou a pergunta ao MCTI.

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Enchente devastou cidade de Arroio do Meio, no Rio Grande do Sul, no ano passado. Foto: Wilton Junior/Estadão

Segundo o Cemaden, 53% dos alertas emitidos eram ligados a risco geológicos, como deslizamentos de terra, e 47% a riscos hidrológicos, como inundações, alagamentos e enxurradas. A recorrência de desastres evidencia a necessidade do fortalecer o órgão.

Criado em 2011 - como resposta ao desastre na Região Serrana do Rio de Janeiro, que deixou 917 mortos -, o Cemaden nasceu com a tarefa de alertar com antecedência sobre eventos extremos e reduzir o número de vítimas e prejuízos. Para isso, utiliza tecnologias para monitoramento do solo e das chuvas, entre outras ferramentas.

Em novembro, o Brasil sedia em Belém a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30), para discutir medidas para se adaptar ao aquecimento global - e também como freá-lo.

Dados do órgão revelados pelo jornal O Globo e confirmados pelo Estadão mostram que em 2012, o centro operava com 75 funcionários temporários que depois foram absorvidos para monitorar apenas 286 municípios. Doze anos depois, em 2024, eram 96 funcionários para 1.133 municípios, onde estão 60% da população brasileira.

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Coordenador geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, José Marengo afirma que, diante da crise climática, o ideal seria monitorar todos os municípios do País e não só os considerados prioritários. “Aí está o problema. Deveria monitorar os 5 mil e tantos municípios, mas devido à falta de pessoas, falta de equipamentos, não é possível.”

A demanda cresceu exponencialmente, em descompasso com o aumento do quadro funcional. Enquanto o total de cidades monitoradas ficou 296% maior, o número de servidores aumentou apenas 28%.

Em 2013, o órgão solicitou 180 vagas extras, mas, na época, menos da metade do pedido foi de fato atendido. Informações do SIGA Brasil, sistema da consultoria de orçamento do Senado, relativas à ação “20GB- Monitoramento e Alertas de desastres naturais” (a principal), mostram a restrição orçamentária.

Desde 2011, considerando o orçamento autorizado, o ano de 2016 foi o que teve maior montante, com R$ 49 milhões (valores corrigidos pela inflação, segundo o índice IPCA).Desde então, os valores caíram até 2022, quando o orçamento chegou a R$ 21,4 milhões sob a gestão Jair Bolsonaro (PL).

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Na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os valores seguem estagnados, atingindo R$ 22,9 milhões em 2024.

Marengo exemplifica áreas relevantes descobertas. “Áreas mais pobres no interior da Amazônia, e outras vulneráveis a inundações, às vezes não são monitoradas. E não é porque não aconteçam (eventos extremos) ou porque não queremos (monitorar), mas porque não tem instrumento para colocar em todos (os locais).

No ano passado, a Amazônia enfrentou seca histórica que deixou rios importantes, com o Negro e o Solimões no menor nível registrado. A estiagem isolou comunidades, que dependem das águas para se locomover, e gerou desabastecimento.

O governo enviou um projeto de Lei Orçamentária que prevê R$19,9 milhões para o órgão em 2025. O Orçamento deste ano ainda precisa ser aprovado pelo Congresso. O valor fixado pelo governo é R$801,3 mil a mais do que havia proposto para o ano passado (R$19,1 milhões).

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Diretora substituta do Cemaden, Regina Alvalá afirma que mesmo com a alta demanda, o órgão emitiu alertas antecipados para todos os eventos ocorridos no Brasil desde 2011. Ela diz que, de fato, é preciso aumentar o número de funcionários, mas pondera que ao longo do tempo o Cemaden implementou ferramentas que aumentaram a eficiência, mesmo com quadro reduzido.

“Automatizamos vários processos, por isso ainda não temos impacto desesperador na (área de) operação”, afirma ela. “Certamente precisamos de mais servidores para a área de pesquisas, de tecnologia da informação, para a Engenharia.”

Segundo ela, medidas já vem sendo tomadas, como a contratação de 35 servidores após processo seletivo específico e do Concurso Público Nacional Unificado. Houve intervalo de quase 10 anos sem novas seleções. Regina diz ainda que o governo federal tem repassado recursos extras para o órgão.

O Cemaden ainda informou, em nota, que recursos destinados ao centro foram priorizados no PAC, que repassou R$ 82 milhões para aumentar a cobertura de monitoramento e alerta, e incrementar a estrutura de tecnologia da informação. O órgão afirma que R$ 50 milhões já foram empenhados no ano passado.

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“Com o aumento previsto de mais municípios, será imprescindível aumentar o número de profissionais na Sala de Situação. É preciso ficar claro que uma parte do centro trabalha 24 horas, mas a outra parte não. Além disso, contamos com bolsistas, serviços terceirizados, etc. Precisamos de mais servidores para diminuir a necessidade de bolsistas”, diz.

Diante do aumento da frequência de eventos extremos, o Cemaden vai lançar na semana que vem o GeoRisk, novo sistema de alertas de deslizamento mais avançado, que permitirá emissão de avisos com até 72 horas de antecedência.

O novo sistema combina várias bases de dado do órgão para permitir diagnóstico mais ágil da situação. O lançamento ocorrerá no dia 13, com presença da ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos.

‘Fragilização do Cemaden’ é risco à proteção, diz Procuradoria

Além de expandir o monitoramento, Marengo, do Cemaden, explica que mesmo na capacidade atual é preciso recursos financeiros e técnicos especializados para manter os equipamentos funcionando.

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“Tem instrumentos que não estão funcionando, outros que ainda estão em caixas e devem ser instalados, mas isso demanda recursos e muitas vezes não temos”, afirma, acrescentando que é necessário contratar mais meteorologistas, hidrologistas e outros profissionais da área.

Apesar das dificuldades, ele destaca que o Cemaden é uma referência. " É um exemplo a seguir. Não existem centros similares no mundo.”

O Cemaden tem parcerias com a Agência Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) e com o Centro Comum de Pesquisa (JRC) da União Europeia.

A estrutura aquém do necessário fez com que o MPF instaurasse procedimento para apurar as condições do órgão. A Procuradoria pretende mapear as lacunas operacionais para identificar medidas necessárias para aumentar o número de funcionários e incremento dos equipamentos.

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“A fragilização do Cemaden coloca em risco a rede de proteção à população, podendo levar à violação de direitos humanos como o direito à vida, à saúde e à moradia digna”, afirmou, em nota, a procuradora da República Ana Carolina Haliuc Bragança, responsável pelo procedimento.

Diretora adjunta de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e autora do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, Patrícia Pinho afirma que o monitoramento e emissão de alertas ainda não é realidade na maior parte da região.

“É muito desigual. Na Amazônia Legal, temos poucos municípios monitorados, quase nada além das capitais, onde a incidência dos eventos extremos afeta mais de 10 milhões de pessoas ao longo de 20 anos de análise que desenvolvemos.” Ela diz que, mesmo quando há monitoramento, nem todos os riscos são mapeados devido ao vazio informacional.

Prevenção e identificação de padrões

“O conhecimento e antecipação dos problemas pode significar uma rota bem mais segura e menos dolorosa para enfrentar efeitos do aquecimento global”, diz Suzana Kahn, especialista em mudanças climáticas e diretora da Coppe-UFRJ, Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Segundo ela, além da prevenção, o centro fornece dados que podem ser valiosos para entender padrões do clima. A Grande São Paulo, por exemplo, já vê aumentar a recorrência de dias com chuvas extremas nos últimos sessenta anos.

“Com isso, é possível ter mais tempo de organizar - seja uma cidade ou um único local - de forma a proteger a população. Ou seja, retirando daquele local de risco, dando tempo de sair ou até um tipo de prevenção mais duradoura, com a construção de diques, proteção de áreas de rios”, explica.