O Tribunal de Justiça de São Paulo vai decidir se os pais da menina Juliana Bonfim da Silva, de 13 anos, devem ou não sentar no banco dos réus. Testemunha de Jeová, ela morreu sem que a família autorizasse a filha a receber transfusão de sangue. O que está em jogo é saber se os pais assumiram um risco de matá-la e pouco se importaram com isso ou se a opinião deles não devia ser levada em conta pelos médicos diante do risco iminente de a paciente morrer.Aspectos médicos, religiosos e sociais estão por trás da decisão jurídica que será dada ao caso pela 9.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça no dia 18. Além do militar da reserva Hélio Vitório dos Santos, de 68 anos, e da dona de casa Ildemir Bonfim de Souza, de 57, pais da menina, é réu nesse processo de homicídio doloso o médico e amigo da família José Augusto Faleiros Diniz, de 67, membro do grupo de testemunhas de Jeová da família. Dos médicos que trataram da menina no hospital, nenhum foi acusado.Por enquanto, os réus estão perdendo o julgamento por 2 votos a 1. Com o recurso da defesa, dois novos desembargadores vão analisar os autos e decidir se eles vão à júri. Trata-se de um processo que se arrasta há 13 anos. Os réus foram denunciados pela promotoria em 1997, depois de quatro anos da morte da filha, em 22 de julho de 1993, em hospital em São Vicente, no litoral paulista.Para a promotoria, os pais da vítima, "apesar de todos os esclarecimentos feitos por médicos do hospital, recusaram-se a permitir a transfusão de sangue na paciente, invocando preceitos religiosos da seita Testemunhas de Jeová, da qual eram adeptos".O pai de Juliana não era testemunha de Jeová, só a mãe. A filha sofria de anemia falciforme - doença sanguínea rara que deforma hemoglobinas. Ele foi levada pelos pais ao Hospital São José, em meio a uma crise de obstrução dos vasos sanguíneos. Os médicos disseram que a mãe se negou a autorizar a transfusão. O médico amigo da família teria ameaçado os colegas caso desrespeitassem a vontade da mãe.Na Justiça, o médico negou a ameaça e disse que só sugeriu tratamentos alternativos à transfusão. A mãe negou ter dito que preferia ver a filha morta do que salva pela transfusão. "Apenas deixei que minha filha decidisse." O pai também negou a acusação. "Tratar os pais, que amavam essa menina e a levaram ao hospital para salvá-la, como assassinos é uma crueldade", disse o criminalista Alberto Zacharias Toron.Os desembargadores que votaram a favor de mandar os acusados a júri afirmam que os jurados é quem devem decidir se a oposição da família e do médico, ao retardar ou impedir a transfusão, foi essencial para causar a morte da vítima. "Mesmo que pareça fora de dúvida que tanto a lei penal quanto o Código de Ética Médica autorizem a transfusão em caso de iminente perigo de vida, independente do consentimento de quem quer que seja", escreveu o desembargador Galvão Bruno.Nuevo Campos, o desembargador que votou a favor da família, afirmou que não houve crime. "Pois, em se tratando de hipótese de iminente risco de vida para a ofendida, o dissenso dos réus não possuía qualquer efeito inibitório da adoção do indispensável procedimento terapêutico a ser adotado, ou seja, a transfusão de sangue. Os integrantes da equipe médica tinham o dever legal de agir." O julgamento será definitivo em São Paulo - só caberá recurso aos tribunais em Brasília.PARA ENTENDERO artigo 22 do Código de Ética Médica em vigor prevê que é vedado ao médico "deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte".A resolução 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina cita o Código de Ética Médica e orienta o profissional da saúde a respeitar "a vontade do paciente ou de seus responsáveis" se não houver iminente perigo de vida, mas praticar "a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis" em caso de risco de morte.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.