O papa Francisco iniciou o ano com um discurso sobre o rosto feminino da Igreja e a necessidade de combater a violência contra a mulher. “Lembremos disso: o amor nunca sufoca, o amor dá espaço ao outro e permite que cresça”, afirmou ele diante dos milhares de fiéis que o escutavam da Praça de São Pedro no Vaticano.
Isso um ano após a morte de Bento XVI, na sequência de um encontro com um dos principais líderes contrários a suas propostas e em meio ao avanço da rejeição a bênçãos a casais irregulares e LGBT+, sobretudo na América e na África.
Francisco vive o momento de maior tensão interna de seu pontificado, iniciado em 2013. Apenas dez dias após a publicação da Declaração Fiducia supplicans, do Dicastério para a Doutrina da Fé, que autorizou bênçãos a casais irregulares com aval direto do chefe da Igreja Católica, a Conferência Episcopal de Moçambique anunciou que não seguirá a recomendação. A medida é mais relevante por envolver pela primeira vez todos os bispos de um país, sob alegação de que abençoar essas bênçãos “está a provocar no meio das nossas comunidades cristãs, e não só, questionamento e perturbações”. Isso em um continente único, onde a Igreja Católica cresce 8 milhões de fiéis por ano.
Não é uma reação isolada. Bispos de Angola, Quênia, Nigéria, Malaui, São Tomé e Príncipe, Uganda e Zimbábue estão entre os clérigos africanos que disseram que não abençoarão casais do mesmo sexo. Nesses casos, porém, argumentaram que o decreto do papa pode ser interpretado como opcional – como é realmente citado no documento, que sugere evitar situações que “escandalizem” a comunidade de fiéis. No Hemisfério Norte, prelados de Ucrânia e Casaquistão também rejeitaram a possibilidade. Outras conferências episcopais, como a húngara, destacaram a seus padres o fato de que bênçãos individuais são sempre permitidas, mas as comunitárias, ou a casais irregulares, devem ser evitadas, quando houver possibilidade de sugerir que se trata de rito, de um sacramento, ou de qualquer aval formal.
Além de emblemáticos, os “questionamentos” e perturbações citados pela conferência de Moçambique, no entanto, estão em linha com as críticas feitas ao papa por outros bispos católicos. A principal voz nesse sentido é do ultraconservador cardeal americano Raymond Burke, com quem o pontifície se encontrou na sexta-feira, no dia seguinte à divulgação do comunicado da assembleia de bispos africana.
Não foram divulgados detalhes do encontro e o cardeal, quando questionado pelo jornal italiano Il Messaggero, preferiu não fazer comentários, mas certamente foi abordada a decisão de Francisco, que em um encontro em 20 de novembro com os chefes dos dicastérios (os ministérios vaticanos) informou que eliminaria o aluguel privilegiado do apartamento que ele tem próximo da Praça de São Pedro e também reduziria seu salário. Segundo alguns presentes, que preferiram o anonimato, o papa teria explicado que a razão do seu gesto foi a desunião que o cardeal prega e o fato de estar usando o apartamento e o salário oferecidos pelo Vaticano contra a Igreja.
O cardeal é um dos mais críticos de Francisco, tendo participado de uma conferência intitulada “A Babel Sinodal”, um dia antes do início do Sínodo dos Bispos do ano passado, durante a qual se criticou duramente a assembleia em que pela primeira vez os leigos tiveram direito a votar e as mulheres tiveram voz. Além disso, anteriormente Burke e outros cardeais reformados, como o alemão Walter Brandmueller, o mexicano Juan Sandoval e o guineense Robert Sarah, bem como o arcebispo reformado de Hong Kong Joseph Zen, publicaram uma carta com cinco ‘dubia’ (dúvidas) apresentada a Francisco sobre o Sínodo.
Nesse documento, expressaram preocupação de que “a bênção dos casais homossexuais poderia criar confusão, não apenas por fazê-las parecer análogas ao casamento, mas porque os atos homossexuais seriam apresentados como um bem” e outras questões. Burke também já havia participado anos atrás de outra carta com dúvidas enviada ao papa após a publicação da exortação apostólica “Amoris Laetitia”, em que pedia mais atenção com os divorciados e aqueles com uniões irregulares.
Francisco não tem evitado o confronto. Diferentemente do início do pontificado, quando evitou polêmicas, o papa não só decidiu atuar contra os críticos. Tem reiterado seu ponto de vista nos discursos. E o fez à Cúria Romana, no dia 21, destacando os 60 anos de “confrontos” entre aqueles definidos como conservadores e progressistas, 60 anos após o Concílio Vaticano II. Segundo ele, é preciso deixar “ideologias inflexíveis que nos impedem de ver a realidade”.
Ontem na festa de Maria, Mãe da Igreja, que abre o ano civil, voltou a falar da necessidade de abrir mais espaço às mulheres – outro ponto de confronto com os tradicionalistas. “A Igreja precisa de Maria para descobrir o seu próprio rosto feminino: para se assemelhar ainda mais a Ela que, como mulher Virgem e Mãe, representa o seu modelo e figura perfeita, para abrir espaço às mulheres e ser geradora duma pastoral feita de cuidado e solicitude, paciência e coragem materna.”
Na sequência, disse que “toda a sociedade precisa de acolher o dom da mulher, de cada mulher: respeitá-la, protegê-la, valorizá-la”. “Sabendo que, quem fere ainda que seja uma única mulher, profana Deus, nascido de mulher.”
Há um outro ponto a considerar nessa divisão. Se muitos vaticanistas e até mesmo defensores do pontificado atual lamentam o fato de Francisco não ter um sucessor claro na sua linha, diferentemente do que ocorreu com João Paulo II, também não há um líder claro no campo contrário. A maior parte dos críticos ultraconservadores, como os citados, se encontra aposentada – e há claras dúvidas se seriam votados em um futuro conclave.
Também não parece haver sucessores claros do papa emérito Bento XVI, cuja morte completou um ano anteontem. A lembrança de sua vida foi feita em uma missa na Basílica de São Pedro, a qual compareceram alguns de seus principais colaboradores e foi presidida por seu secretário particular, Georg Gänswein. Ele destacou o religioso, primeiro papa em séculos a renunciar, como um exemplo a ser seguido, sobretudo em sua teologia. Ícone dos tradicionalistas, o ex-cardeal Ratzinger, que chefiou o Dicastério para a Doutrina da Fé no pontificado de João Paulo II, sempre foi um crítico de “aberturas” maiores ou a ceder a “ventos” teológicos. Na prática, era um crítico por exemplo a permitir que homens casados pudessem fazer celebrações.
Francisco não compareceu. Gänswein é um crítico contumaz do atual líder católico e, até por isso, foi enviado do Vaticano de volta para a Diocese de Friburgo. Estiverem presentes, porém, dois líderes da Igreja contrários ao atual papa: o alemão Gerhard Mueller, que considerou “blasfêmia” a possibilidade de bênçãos a casais irregulares, e o suíço Kurt Koch.
Esse embate não deve arrefecer neste ano. Pelo contrário: há alguns sinais de que o papa está cada vez mais com dificuldades de saúde e no segundo semestre há a segunda fase do Sínodo dos Bispos, que deve levar a uma exortação papal que pode ampliar ainda mais as críticas conservadoras. Isso às vésperas de um jubileu universal convocado por Francisco para 2025. COM EFE, REUTERS, AFP E VATICAN NEWS
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.