PUBLICIDADE

Papa viaja para evento em Portugal e vítimas de abuso na Igreja Católica querem encontro

Líder do Vaticano participa da Jornada Mundial da Juventude; investigação apontou milhares de abusos de padres do país. É a primeira viagem do pontífice ao exterior após cirurgia

PUBLICIDADE

Por Mar Marín

LISBOA - Aos 70 anos, Antonio Grosso recorda todos os detalhes dos abusos sofridos na infância. Seu testemunho faz parte da investigação que revelou a existência de cerca de cinco mil vítimas dentro da Igreja Católica portuguesa. “Nunca mais”, afirma, às vésperas da visita do Papa Francisco a Portugal.

PUBLICIDADE

A associação Coração Silenciado, que reúne vítimas de abusos pela Igreja, lamenta que a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) não faça referência ao tema, embora não perca a esperança de que o papa Francisco lance alguma manifestação pública em apoio às vítimas”.

É a primeira viagem do pontífice ao exterior após se submeter a uma cirurgia no intestino em junho. Foi a segunda vez que Francisco, de 86 anos, passou por um procedimento desse tipo, para evitar obstruções intestinais.

Papa Francisco participará da Jornada Mundial da Juventude em Portugal Foto: AP Photo/Andrew Medichini

A agenda oficial de Francisco em Portugal começa na quarta-feira, 2 de agosto, e termina no domingo, 6, com cerimônias em Lisboa e no santuário de Fátima, durante a JMJ.

Não há menção aos abusos no programa, embora o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, não exclua um encontro com as vítimas que, “se existir”, será “reservado, para facilitar o processo de cura”.

A JMJ é celebrada em um país que há seis meses ficou chocado com as revelações de uma comissão independente criada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP): mais de 4,8 mil vítimas de abusos na igreja e dezenas de abusadores ativos. A CEP é semelhante à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

“É preciso fazer um alerta para que isso nunca mais aconteça”, afirma Grosso em entrevista à agência de notícias Efe.

Publicidade

Mensagens para o Papa

A grande esperança para as vítimas é o encontro com o papa, que, explica Grosso, deve ser reservado, com apenas uma dezena de pessoas em local a definir, e ao qual poderá acompanhar um membro do Coração Silenciado.

Será a sua oportunidade de entregar um relatório com testemunhos e uma proposta para prevenir por lei a prescrição dos crimes de abuso de menores na igreja.

“A prescrição, para nós, é em si um crime. Nunca prescreve o drama de uma menina estuprada, ou de um menino maltratado”, denuncia.

A associação quer ainda retomar o direito à indenização das vítimas e criticar a reação da liderança católica portuguesa, que, lamenta Grosso, “encobriu abusos” e fez comentários “indignos” para minimizar a gravidade do problema.

“Houve uma atitude de desprezo pelas vítimas e desvalorização do trabalho da comissão independente”, diz.

A CEP deixou nas mãos dos bispos a decisão sobre os suspeitos, e cada diocese agiu por conta própria, afastando cerca de quinze padres do cargo, alguns dos quais retomaram a atividade nos últimos meses.

As críticas não tardaram a chegar, mesmo dos mais altos escalões, como do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, conservador e católico praticante, que não escondeu a sua “decepção” com a reação da Igreja.

Publicidade

“Tem de denunciar”

Filho de família numerosa e católica, o caso de Antonio Grosso ilustra bem os abusos na Igreja em Portugal nas décadas de 1960 e 1970.

Aos 10 anos, ele entrou para um seminário em Santarém, a cerca de 80 quilômetros de Lisboa, e foi abusado pelo padre, personagem conhecido na época por comandar as missas dominicais transmitidas pela televisão pública durante a ditadura.

Mais tarde, Grosso foi para um abrigo perto de Fátima administrado por um frade franciscano “muito mais sórdido e violento”. Além de sofrer abusos sexuais, ele passou fome e violência.

“Ele se masturbou entre minhas pernas e me disse ‘agora você tem que ir à missa, mas primeiro confesse seus pecados’, como se eu fosse o pecador”, lembra. “É o complexo de culpa hipócrita que eles criam nas vítimas.”

“Eles nos imputam o pecado e nos fazem viver em um silêncio horrível, que no meu caso durou dez anos. Tive acessos de raiva, complexo de culpa, muita humilhação e autopunição, até me bati na frente do espelho.”

Grosso conseguiu quebrar o cerco do silêncio. “Hoje estou felizmente livre do trauma, embora não da raiva. Consigo falar com naturalidade e cada vez que o faço me liberto ainda mais”, diz. “Tem de denunciar, denunciar, denunciar”, conclui. / COM AGÊNCIA EFE

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.