Grupos mafiosos e organizações criminosas usavam um sistema de mensagens criptografadas para escapar da vigilância da polícia e de agências de inteligência. Por meio de criptofones, aparelhos capazes de burlar a vigilância de investigadores ao redor do mundo, traficantes de drogas e armas acertavam detalhes sobre o envio a partir do Brasil e de outros países da América do Sul de toneladas de cocaína para Europa, Ásia e Oceania. Além disso, negociavam traficar armas e ocultar remessas de dinheiro entre os continentes, lavando os recursos ilícitos.
Segundo as mensagens encontradas pela Operação Eureka e decifradas pelo Raggruppamento Operativo Speciale (ROS), dos Carabineiros italianos, o sistema de mensagens Sky ECC era usado pelos mafiosos daquele país, principalmente da ‘Ndrangheta, por traficantes servo-montenegrinos, por terroristas paquistaneses e integrantes de outras de organizações criminosas ao redor do mundo, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
O Sky ECC pertence à empresa canadense Sky Global. Em 2021, Jean-Francois Eap, CEO da companhia, foi indiciado nos Estados Unidos por fornecer comunicação criptografada para narcotraficantes. À imprensa na época, ele negou elo com o crime organizado e disse defender a privacidade dos usuários na plataforma. O Estadão não conseguiu localizar a defesa.
Após a investigação da polícia europeia, a Europol, o site também foi derrubado em 2021 pelo FBI, o Departamento Federal de Investigações americano.
As mensagens criptografadas dos mafiosos foram apreendidas pelas polícias francesa e belga, que as compartilharam com os colegas da Itália. Tudo começou quando a Procuradoria Federal da Bélgica conseguiu infiltrar o agente Jovan Jankov em Luxemburgo entre mafiosos calabreses da ‘Ndrangheta que atuavam na Bélgica e pertenciam à ndrina (clã) Strangi, de ‘Fracascia di San Luca’. E assim conseguiram ter acesso ao servidor que mantinha Sky ECC.
Além dos franceses, belgas e italianos, os policiais holandeses e alemães tiveram acesso ao sistema. No último dia 29, o escândalo da Sky ECC levou à condenação de 116 dos 125 acusados de operar uma rede de tráfico de drogas no porto de Antuérpia, na Bélgica.
O caso provocou um terremoto político em Montenegro, sendo apontado como uma das causas da derrota, em abril de 2022, nas eleições do então presidente Milo Djukanovic, depois que mensagens do sistema Sky ECC teriam vinculado policiais e magistrados do País aos criminosos da máfia dos Bálcãs.
Como funcionavam o sistema Sky ECC e os criptofones
De acordo com os investigadores italianos, os mafiosos operavam o sistema Sky ECC em criptofones tchecos para suas comunicações ao redor do mundo. Os criptofones, segundo eles, são smartphones com software modificado por operadores clandestinos, com o objetivo de garantir a inviolabilidade das comunicações.
Além de traficar drogas e armas para as Américas, Europa, Ásia e Austrália, eles mantinham contatos com grupos chineses para movimentar recursos e lavar dinheiro. Foi por meio do acesso às mensagens do Sky ECC que a polícia italiana localizou o chefão Rocco Morabito. Ele era um dos foragidos mais procurados no mundo pelo Interpol, em suas andanças pela América do Sul, após sua fuga da cadeia uruguaia, em 2019, onde aguardava a extradição para a Itália.
Acompanhando as mensagens, foi possível verificar que ele passara pelo Paraguai e pelo Peru antes de se esconder no Brasil. E foi assim também que a polícia italiana descobriu que Morabito enviou o primeiro carregamento de 200 quilos de cocaína para a Itália apenas três meses depois de escapar da cadeia. É nesse ecossistema mundial do crime que os traficantes brasileiros do PCC e do Comando Vermelho (CV) se envolveram.
Para os magistrados italianos, os criptofones se mostraram muito úteis às organizações criminosas, em razão dos sistemas de códigos avançados, tanto para os dados armazenados, quanto para os canais de conversação. Os aparelhos permitiam ainda apagar mensagens de forma remota ou automática, após sete dias do último uso do aparelho ou após certo tempo de desconexão da rede telefônica ou telemática.
Os criminosos usavam ainda aplicativos para simular um telefone comum e enganar a polícia, em caso de revistas em blitze. Os criptofones custavam cerca de € 1.100. Esse foi o valor que Carmelo Morabito, sobrinho de Rocco, desembolsou em julho de 2019 para comprar um aparelho para seu tio.
Os aparelhos tinham ainda um cartão com um código de pânico, que podia apagar todo o conteúdo do dispositivo, além de códigos de desbloqueio, seja do sistema operacional quanto de apenas um aplicativo. Segundo os investigadores italianos, eles eram ainda considerados “impermeáveis ao acesso e às modificações do sistema operacional para impedir intervenções de peritos das forças de segurança”.
De acordo com os peritos italianos, os criptofones eram de “última geração” e “não podiam ser interceptados e foram projetados para a atividade criminosa”. “Em razão do custo exorbitante e da necessidade de se conhecer os codinomes das pessoas com quem se deseja conversar, eles eram normalmente usados por organizações criminais estruturadas”, escreveram os peritos.
Como os italianos usaram o sistema para incriminar os mafiosos
Durante a Operação Eureka, os magistrados italianos usaram os dados obtidos pela força-tarefa de investigação internacional Argus, graças à violação do servidor da plataforma Sky ECC. “As Autoridades estrangeiras, de fato, conseguiram acessar centenas de milhões de mensagens dos usuários do Sky ECC e apreenderam o servidor que as continham”, afirmou o juiz de instrução Claudio Treglia, na decisão em que decretou a prisão de Morabito e de outros 14 acusados – quatro deles em detenção domiciliar.
“O monitoramento do chat dos mafiosos permitiu às polícias europeias efetuar centenas de prisões e a apreensão de cerca de 20 toneladas de drogas, armas e milhões de euros provenientes de atividades ilícitas”, escreveu o magistrado. As mensagens encontradas no sistema Sky ECC estavam relacionadas a cerca de 2 anos de comunicações, entre março de 2019 e março de 2021.
As comunicações aconteciam geralmente entre parentes ou entre pessoas com antecedentes criminais. os criminosos se sentiam à vontade para trocar fotos de pessoas torturadas pelo tribunal da máfia, carregamentos de drogas, de armas e montanhas de dinheiro obtidas com o tráfico de cocaína, extorsões, venda de armas e corrupção.
No chat, Morabito usava sete codinomes diferentes, entre eles Zio (Tio), Cartier, Francisco e Il Ritorno (A volta). Quatro dias após a sua fuga no Uruguai, Morabito já começou a usar o criptofone por meio do Sky ECC. A primeira conversa foi com seu sobrinho Carmelo, que estava na Itália e assegurava a Rocco que “a tia estava bem”.
Pouco a pouco os investigadores foram identificando os usuários do sistema por meio de dados que eles mesmos escreviam em suas mensagens, citando condenações por crimes e laços de amizade ou parentesco. Um dos acusados, Pietro Fotia, por exemplo, usava dois telefones distintos.
Também usaram os dados dos chats para reconstruir viagens e o envio de carregamentos de cocaína, podendo ligar os responsáveis pelo tráfico a cada carga apreendida, bem como o uso de doleiros para fazer remessas de dinheiro entre o Brasil e a Europa – Rosário Falzea era o responsável por esses contatos.
As mensagens dos mafiosos registraram ainda as preocupações com a possibilidade de a polícia conseguir decifrar os códigos e invadir o sistema. Isso ficou registrado em uma conversa de 5 de maio de 2021 entre os mafiosos Sebastiano Giampaolo e Vincenzo Pasquino, que atuavam no envio de droga do Brasil para a Europa. No diálogo, eles comentam prisões efetuadas na Calábria e no Piemonte, duas regiões da Itália com forte presença da ‘Ndrangheta. Pasquino, então, questiona Giampaolo: “Mas eles (os policiais) abriram os telefones? Dias depois, seria sua vez de ser preso.
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