Do uso de igrejas como fachada até a criação de contas em bancos digitais, o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do País, tem diversificado as formas de lavar dinheiro para esconder os ganhos obtidos com o tráfico internacional de drogas e driblar a fiscalização da polícia. A estimativa é que a facção lucra US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões) ao ano, em atuação que extrapola as fronteiras.
Autoridades policiais ouvidas pelo Estadão apontam que o avanço do tráfico de cocaína criou uma maior necessidade não só de o PCC, como de outras organizações criminosas, de sofisticar as formas de lavar dinheiro e tirar o peso de estratégias já conhecidas pelos investigadores. “Seguir o caminho do dinheiro”, afirmam promotores e delegados, tem se tornado algo cada vez mais complexo.
“Antes, o PCC mandava 100kg, 200kg, 300kg, para outros países, muitas vezes em uma bolsa em um container. Hoje são de 4 a 5 toneladas por mês”, afirmou o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). “Mas estima-se que o tráfico ligado a nomes do PCC é muito maior.”
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Segundo ele, o crescimento do tráfico foi tamanho ao longo dos últimos anos que alguns dos principais nomes do grupo criminoso surgido nos anos 1990, como Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, e Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, passaram a ter negócios próprios para o tráfico. A venda de cocaína para a Europa é considerada o atual carro-chefe.
Como reflexo disso, só no porto de Antuérpia, na Bélgica, foram apreendidas 110 toneladas de cocaína em 2022. Segundo maior consumidor de pó do mundo e vizinho de países produtores, o Brasil também tem forte atuação no envio de remessas para África e Ásia.
Essa maior movimentação, acrescentou o promotor, criou uma maior necessidade do PCC de ampliar as formas de lavar dinheiro. Não à toa, esse tem sido um dos focos principais das denúncias mais recentes oferecidas no âmbito da Operação Sharks, do MP-SP, além de ser abordado em investigações em outros Estados.
Das ‘casas-cofre’ ao sistema digital
Um reflexo da sofisticação das formas de lavar dinheiro tem sido o gradual abandono das chamadas “casas-cofre”, tradicionais nos esquemas de lavagem de dinheiro do PCC.
“Antigamente, se arrecadavam, por exemplo, R$ 10 milhões, compravam uma casa, construíam um cofre – ou enterravam o dinheiro – e colocavam uma família para morar. Depois, de vez em quando, abriam o cofre para pagar um fornecedor”, disse Gakiya. Outra forma tradicional de lavagem são os postos de gasolina.
Com o fortalecimento da facção, um dos métodos que crescem é o de se infiltrar na administração pública. Como revelou o Estadão, algumas empresas de ônibus que mantêm contratos com a Prefeitura de São Paulo têm diretores investigados pela polícia em razão da suposta participação em crimes ligados ao PCC.
Fora dos contratos com governos, as estratégias vão desde aplicar o rendimento ilícito em criptoativos até usar igrejas para lavar dinheiro. “Há situações também, que ainda estamos investigando, de criminosos ligados ao PCC criarem suas próprias fintechs, os bancos digitais. São pelo menos duas ou três instituições, que estão sob investigação, ligadas a criminosos até famosos do PCC”, disse Gakiya.
Por ser uma investigação ainda em andamento, o promotor afirma não ser possível precisar se são fintechs que já existiam (e foram cooptadas pelo crime organizado) ou se foram criadas já com o fim de lavar dinheiro.
Em 2023, uma das fases da Operação Sharks prendeu dois operadores que se reportavam diretamente a dois dos principais líderes do PCC, Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, e Odair Mazzi, o Dezinho. O ‘Dezinho’ está preso desde julho do ano passado e ‘Tuta’ é considerado foragido.
Um dos alvos de mandados de busca cumpridos na operação foi a casa de ‘Dezinho’, mansão de 600 m² em Alphaville, na Grande São Paulo, avaliada em R$ 4 milhões. Foragido desde 2020, o líder do PCC foi preso em um condomínio de luxo na Praia dos Carneiros, cartão-postal de Pernambuco.
Os operadores usavam criptomoedas e contas em bancos digitais, conforme a investigação, para driblar o rastreamento o dos caminhos percorridos pelo dinheiro. As movimentações diluídas e capilarizadas e a fragilidade do sistema de fiscalização dificultam o trabalho dos investigadores.
“As facções estão usando Pix, contas falsas e inclusive fintechs para coletar dinheiro do tráfico. É muito fácil criar e descartar uma conta, então se aproveitam disso. Pegam CPF e dados pessoais de quem não têm envolvimento com o crime, são (réus) primários, e criam contas, especialmente nas fintechs, e passam a movimentar valores”, disse Augusto de Lima, promotor do Ministério Público do Rio Grande do Norte.
Lavagem envolve até uso de igrejas
O MP potiguar deflagrou em 2023 uma importante fase Operação Plata, criada para desmantelar um esquema encabeçado por nomes ligados ao PCC investigado por usar sete igrejas para lavar dinheiro em diferentes Estados: além do Rio Grande do Norte, havia unidades na Paraíba e em São Paulo.
“As igrejas não foram criadas para esse fim, mas eram usadas para fazer o que chamamos de mescla: uma mistura de recursos lícitos – dízimos e doações dos fiéis – e também recursos ilícitos”, disse Lima, um dos responsáveis por oferecer a denúncia à Justiça.
Unidades da Assembleia de Deus para as Nações de Jardim de Piranhas (RN) e Sorocaba (SP) estão entre as investigadas. Procuradas pela reportagens, nenhuma das igrejas se manifestou até a publicação deste texto.
A ofensiva teve como alvo principal Valdeci Alves dos Santos, o Colorido, de 52 anos, criminoso que já foi apontado como nº 2 do PCC nas ruas – hoje ele está preso da Penitenciária Federal de Brasília. Além de seu irmão, Geraldo dos Santos Filho, de 48 anos. Ele é acusado de se passar por pastor no esquema. “Ano após ano a coisa vai ficando um pouco mais complexa.”
A suspeita é de que o grupo, composto por aproximadamente 12 integrantes, tenha lavado mais de R$ 23 milhões ao longo dos últimos dez anos, em esquema que também envolvia compra de fazendas e imóveis para “esconder” o dinheiro do tráfico.
A maior parte desse montante, conforme a investigação, foi obtida por meio do tráfico de drogas no Sudeste. A relação com o Rio Grande do Norte é porque trata-se do Estado de origem de Colorido.
Como mostrou o Estadão, nos últimos dias o PCC tem vivido um racha, com a divisão entre Marcola e rivais, com trocas de ameaça de morte entre as lideranças, o que pode influenciar estruturas dos negócios da facção. A reportagem não conseguiu contato com as defesas de Tuta, Dezinho e Colorido.
Sofisticação não se restringe ao PCC
Usar o comércio local para se esconder das autoridades também segue como tática comum- tanto pelo PCC quanto por organizações criminosas menores. Mas, agora, esse modelo também é combinado com esconderijos digitais pelas facções locais.
No fim de 2023, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul deflagrou a Operação Mercado, que teve como foco um supermercado em São Leopoldo. Ordens judiciais também foram cumpridas em cidades como Novo Hamburgo, Canoas e Uruguaiana.
As investigações indicam que o Super Machado seria usado para lavar dinheiro da facção Os Manos, considerada a principal força em algumas regiões gaúchas. “Tínhamos 11 investigados relacionados a esse esquema de lavagem de dinheiro, e o principal seria o Super Machado”, disse o delegado Ayrton Figueiredo Martins Júnior, titular da Delegacia de Polícia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas de São Leopoldo.
Segundo ele, a Operação Mercado começou em 2021, após um juiz condenar algumas pessoas por tráfico de drogas e observar depósitos reiterados de valores se davam em favor do mesmo estabelecimento supermercado.
Com a quebra do sigilo fiscal, a constatação: de 2017 e 2021, o Super Machado teria movimentado quase meio bilhão de reais (R$ 473 milhões). O estabelecimento se manifestou na época da operação.
“Cumprimos 18 ordens judiciais simultaneamente e, em virtude disso, prendemos em flagrante o indivíduo que apontamos como sendo o principal responsável pelos crimes de lavagem de dinheiro”, acrescentou Martins Júnior. Segundo ele, o principal suspeito de comandar o esquema também fez investimentos em criptoativos - parte de uma quantia de R$ 15 milhões em movimentações apontadas como de fachada.
“Já conseguimos localizar parte de alguns dos ativos que estavam em criptomoedas. A lavagem, que no primeiro momento acreditávamos apenas ser através do mercado, também foi feita por investimento em criptoativos, de forma a desvincular a origem ilícita dos valores”, acrescentou o delegado.
Segundo ele, o sistema de lavagem de dinheiro ficou mais complexo e orquestrado. “Muitas empresas sediadas em São Paulo são destino de remessas de dinheiro de indivíduos investigados por lavagem de dinheiro no Rio Grande do Sul e que, por vias de consequência, são empresas especializadas no recebimento de dinheiro ilícito”, disse o delegado.
Procurado para comentar mais a fundo as investigações, o Super Machado não se manifestou.
Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), procurada para comentar a suspeita do uso de fintechs pelo crime organizado afirmou, em nota, que as instituições “adotam rígidas medidas de controles e monitoramento de transações financeiras, seguindo as legislações, normativos e boas práticas nacionais e internacionais, trabalhando em parceria com os órgãos de prevenção e combate a crimes financeiros”. A entidade frisou ainda que os bancos não têm poder de polícia, mas buscam repassar informações continuamente às autoridades.
“Diversas investigações deflagradas pelas polícias (Federal e Civil) e ministérios públicos tiveram sua origem nas comunicações de operações suspeitas que os bancos encaminharam ao Coaf a partir do monitoramento e comunicação de operações suspeitas. Somente em 2023, foram cerca de 1 milhão de comunicações de operações suspeitas efetuadas pelos bancos”, afirmou.
Também em nota, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), afirmou não comentar casos específicos e não atuar como órgão de investigação ou de persecução penal. Ao mesmo tempo, ressaltou que, nos casos em que as referidas fontes apontem situação suspeita, são produzidos e disseminados pelo órgão os chamados Relatórios de Inteligência Financeira (RIF).
Já o Banco Central disse que são de competência da instituição “a supervisão da política, os procedimentos e os controles internos adotados pelas instituições autorizadas a funcionar pelo órgão”. Informou ainda que “as prestadoras de serviços de ativos virtuais, conforme estabelecido pela Lei 14.478, de 21 de dezembro de 2022, e pelo Decreto 11.563, de 13 de junho de 2023, passarão a ser supervisionadas pelo BC quando autorizadas pela Autarquia. A referida regulação está em fase final de desenvolvimento”.
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