Quase um ano após o anúncio, o governo federal ainda não tirou efetivamente do papel o plano de segurança para a Amazônia. Capitaneada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a iniciativa foi apresentada no começo de junho do ano passado, quando a pasta ainda era chefiada pelo agora ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino. No mês seguinte, foi instituída por meio de decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na época, o governo anunciou como ponto central da proposta, nomeada de Plano Amazônia: Segurança e Soberania (Amas), a implementação de 34 bases de segurança. Até agora, porém, nenhuma delas foi construída, ao passo que a presença de facções criminosas chama atenção na região.
O valor do investimento no Amas é de R$ 2 bilhões, distribuídos entre os Estados (que devem ficar com 80% desse montante) e as polícias Federal e Rodoviária Federal. O programa é financiado pelo Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES).
Em nota, o Ministério da Justiça afirmou que o plano está em fase de “construção conjunta” com os nove Estados da Amazônia Legal. Disse também que os processos aquisitivos das 34 bases (6 fluviais e 28 terrestres) ainda não foram iniciados, “em razão da necessidade da elaboração dos documentos de planejamento” para determinar, por exemplo, os locais de implementação. A pasta reconhece que a troca de gestão no ministério no começo deste ano contribuiu para o atraso.
“Achei que seria um pouco mais rápido (a implementação do plano), mas acho que eles estão com algum tipo de dificuldade na execução”, disse ao Estadão o secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Marcus Vinícius Oliveira de Almeida.
O plano de segurança para a Amazônia também previa, por exemplo, a aquisição de equipamentos como viaturas, armas, lanchas e helicópteros. Autoridades ouvidas pela reportagem afirmam, porém, que houve pouco avanço após o anúncio do Amas.
No fim do ano passado, por exemplo, o Ministério da Justiça anunciou a assinatura do termo de financiamento da primeira parcela do plano, de R$ 318 milhões (cerca de 15,9% do previsto). Ainda assim, os projetos das bases terrestres e fluviais não saíram do papel.
Segundo Almeida, bem antes de o plano ser anunciado, o Amazonas já tinha um planejamento para instalação de nove bases fluviais e três bases terrestres em pontos estratégicos. Algumas delas já foram construídas pelo próprio governo do Estado.
“Nós já colocamos quatro nos rios e temos esperança que o governo federal nos ajude com o restante”, afirmou o secretário. Duas delas são móveis (uma no Alto Solimões e outra na foz do Rio Madeira) e outras duas, fixas – nos rios Solimões e Negro. Esta última foi inaugurada no começo deste ano.
Já o Pará, outro Estado bastante afetado pelo avanço da criminalidade na região Norte, hoje possui uma base fluvial em funcionamento (em Antônio Lemos, no estreito de Breves) enquanto constrói outras duas: uma em Óbidos, às margens do Rio Amazonas, e outra em Abaetetuba, próxima à Ilha do Capim.
“Nossas bases funcionam em plantão de 24 horas, têm os equipamentos mais modernos, têm lanchas próprias só para cada base – ao menos uma delas blindadas sempre”, disse Ualame Machado, secretário de Segurança Pública do Estado. Dados do governo do Pará indicam que os roubos a embarcações diminuíram significativamente depois que a base de Antônio Lemos foi implementada, em 2022.
Ainda assim, os roubos a combustíveis, por exemplo, seguem como um motivo de queixa na região. Levantamento do Instituto Combustível Legal (ICL) indica que a atuação desses grupos causa prejuízo anual de cerca de R$ 100 milhões nas atividades de transporte de cargas pelo Rio Amazonas.
Só em ataques contra embarcações de transportadores amazonenses, mais de 7,7 milhões de litros de combustível foram roubados entre 2020 e 2023, o que causou prejuízos de R$ 48 milhões no período, segundo levantamento do Sindicato das Empresas de Navegação Fluvial no Estado do Amazonas (Sindarma).
“Como na região de rios o combustível é algo que se pode chamar de produto-mercadoria – ou seja, algo que pode ser trocado ou vendido –, ele obviamente se torna um bem valorizado e, com isso, um produto de potencial obtenção pela economia criminosa”, disse o pesquisador Roberto Magno, da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Os alvos são não só transportadoras, como até pescadores autônomos. “Há muitos relatos de pessoas que tiveram seu combustível roubado.”
Facções avançam na região
Além de assistir a roubos de combustíveis, a Amazônia também tem se consolidado como um dos epicentros da atuação do crime organizado no Brasil. Ao menos 22 facções, incluindo grupos estrangeiros, disputam o controle de rotas em Estados brasileiros da região, segundo relatório divulgado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Atualmente, o Comando Vermelho (CV) é considerado soberano na região, mas o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção do País, também tem buscado avançar em alguns Estados, como no sul do Pará. Segundo especialistas e autoridades, criminosos têm se estruturado por lá pela proximidade com países produtores de cocaína, como Peru e Colômbia.
Pesquisadores e autoridades afirmam que, além da importação de droga de países vizinhos, o interesse das organizações criminosas é usar a rota do Porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA), para envio de drogas para continentes como África e Europa.
O avanço do crime organizado tem levado insegurança para a Amazônia Legal, com taxas de homicídio bem acima da média nacional. Em alguns casos, integrantes de facções muitas vezes se aproveitam da mesma logística usada por grupos que praticam crimes ambientais (como garimpo, desmatamento etc), em prática que dificulta o trabalho das forças policiais.
“É preciso pensar na possibilidade de um pacto federativo, porque a dimensão territorial e geográfica da Amazônia é gigantesca. Os Estados e municípios sozinhos não dão conta de atender a essas demandas de vulnerabilidade”, afirma o pesquisador Aiala Colares Couto, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para ele, governo federal, Estados e municípios devem estar conectados para enfrentar a expansão das várias modalidades de crimes na região. “Vai desde a atuação de piratas até, por exemplo, a redes de exploração de madeira, de contrabando e de tráfico de drogas, que estabelecem várias relações, fragilizando as políticas de segurança pública na região e colocando as populações sob ameaça constante.”
Na avaliação do promotor de Justiça Igor Starling, do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), as polícias Civil, Militar e Federal realizam um “bom trabalho” na região, mas ainda encontram muitas dificuldades por falta de estrutura para inibir a atuação de piratas e o avanço do narcotráfico pelos rios.
“Investigação no Amazonas exige muita tecnologia, o monitoramento de sinais, vigilâncias e longos deslocamentos, somados com as adversidades geográficas e climáticas, gigantescas fronteiras e território colossal, assim tornando-se complexo e oneroso coibir toda a traficância”, diz o promotor. A construção de mais bases, portanto, seria importante para inibir a criminalidade.
“Em razão do crescimento e fortalecimento dos grupos criminosos e da violência imposta, estamos precisando ampliar ainda mais a nossa atuação em desfavor desse tipo de crime. A crescente relevância (negativa) do tráfico para a população local, a mudança no cotidiano e a influência no dia a dia do cidadão é muito grande”, complementa Starling.
O que diz o Ministério da Justiça
Secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Marivaldo Pereira disse ao Estadão que a pasta “vê com muita preocupação a atuação do crime organizado na região amazônica”. “Exatamente por isso a gente vem dedicando esforços para fortalecer a atuação do Estado no enfrentamento a esses crimes”, disse.
O secretário destaca a criação, pelo governo Lula, de uma diretoria focada em atuar na região amazônica. “O governo retomou uma atuação muito firme, muito forte na região, que já teve resultados muito importantes, como o enfrentamento ao garimpo ilegal, a apreensão de uma série de aeronaves e também a apreensão de drogas e munição.”
Ao mesmo tempo, Pereira reconhece que a troca de gestão do ministério, desde o começo do ano a cargo do ministro Ricardo Lewandowski, afetou o avanço do plano Amas. “Equipe nova chegando, equipe antiga saindo, isso acaba gerando um ou outro atraso. Mas as forças policiais não pararam”, disse. “Tão logo o ministro Lewandowski assumiu, ele pediu prioridade absoluta na condução desse trabalho.”
Segundo o secretário, o governo federal espera concretizar uma atuação mais forte na região justamente a partir da implementação do Plano Amas. “Estamos na reta final para concluir os trâmites burocráticos para formalizar a assinatura do plano com o BNDES e utilizar os recursos do Fundo Amazônia para fortalecer ainda mais a atuação na região”, disse ele.
Em nota, o Ministério da Justiça afirmou que, por ser um plano que se utiliza de recursos do Fundo da Amazônia, o Plano Amas só “terá início das atividades, por parte dos órgãos federais e estaduais envolvidos, após criterioso acompanhamento de auditoria para liberação das etapas financeiras definidas no Plano”. ”Os processos aquisitivos dependem do término dos nove Planos Táticos Integrados e devem se iniciar efetivamente a partir do segundo semestre do ano”, afirmou a pasta.
Pereira afirma, ainda assim, que não há ainda uma data definida para o começo da construção das bases fluviais no âmbito do Plano Amas. “O foco, nessa primeira fase, é fortalecer a adoção de lanchas e também a capacidade de deslocamento aéreo da segurança pública nos âmbitos local e federal. Já as bases estão previstas em novas fases do plano”, disse.
A ideia é que o plano atenda as demandas específicas de cada região para combater a criminalidade. “Há Estados que tem a preocupação com o roubo de combustíveis, assim como outros têm preocupação com o desmatamento ilegal e a venda de madeira ou o tráfico de drogas”, disse Pereira. Ele destaca que, fora do Plano Amas, o governo colocou para funcionar a base fluvial de Nova Era, operada pela Polícia Federal nos arredores de Atalaia do Norte, no Vale do Javari.
Em 2022, as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no oeste amazonense, chocaram o País. Eles desapareceram na manhã de 5 de junho, um domingo, ao atravessar em embarcação própria uma das áreas monitoradas pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), com sede justamente em Atalaia do Norte.
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