Como se alguém conseguisse registrar o ruído de um osso longo ao se quebrar, a poesia de T.S. Eliot transporta a figura de uma terra arrasada para dentro de nós: “E tempo de fato haverá / Para a fumaça amarela que flui pela rua, / Roçando o dorso nas janelas.”. O poeta norte-americano radicado na ex-metrópole britânica ganha, no fim deste ano de 2018, a antologia de seus poemas pela Companhia das Letras com nova tradução de Caetano Galindo.
A construção dos versos um tanto descolados, recortados e dispersos mostra a potência do escritor a nós leitores. Façamos um experimento: imaginemo-nos diante da escultura de mármore que ora posa sobre o belo chão do museu, aquela massa de pedra lisa e branca avermelhada dá um outro tom à escultura, muito distinto daquele que pretendia o grego ou romano que a realizou; Eliot é o restaurador das palavras tal como aquele que resgatou a escultura que ora víamos. Ao encontrar a bela peça não consegue se livrar de todas as marcas que o tempo legou à imagem petrificada – é justamente essa a escrita de Eliot.
Seus poemas, elevados à erudição de um poeta tradicionalíssimo medieval ou do Renascimento, acabam por nos fazer recordar uma sensação atemporal: a História do século 20, as grandes guerras que o envolveram e transformaram-se em eventos intransponíveis para a poesia, bem como a vida pessoal do poeta não são instrumentos suficientes para empreender a leitura de seus versos; as palavras antigas e os recortes das estrofes assumem as marcas de todos os homens e mulheres falantes, daqueles que se comunicam.
A utilidade da palavra poética ainda ocupa, sem se reduzir a ela, a posição comunicativa. Cria-se o vínculo entre um homem e outro, eles agora se entendem e se enxergam, mas é também na sua poesia em que encontraremos as falências da conciliação destes mesmos homens: entendem-se e se enxergam, no entanto, violam-se e se empurram com força. Somos tão somente capazes de agir e reagir na terra arrasada da comunicação, mutilada e tornada jargão ou jingle de propaganda? Mesmo que a palavra esteja refém do seu tempo, há algo que a remete fora do dele, fora do presente. Explico: suspensos todos os deveres do poeta além da poesia, o que ele tem de fazer diante do mundo que explode e condena milhões de pessoas ao sofrimento? Não é a poesia que deve respondê-lo? Os eventos não podem restringi-la, assim como as palavras que os contam são as mesmas que formam o texto, mas não restringir ou constranger o poeta não é o mesmo que dizer que ele passa incólume por estes eventos: “Aqui as imagens de pedra / São criadas, aqui recebem / A súplica da mão de um homem morto / Sob o brilho de um astro em desaparição”, lemos na página 171. A história se torna testemunha e cúmplice da lírica quando esta não se reduz àquela.
A vida do século passado apresentou não só ao trabalho poético, mas também a todas as atividades humanas, o limite dos efeitos que produziam num mundo de escombros. É possível poesia depois das atrocidades? “E vou te mostrar coisa diversa tanto / Da tua sombra de manhã que segue atrás de ti / Quanto da tua sombra à tarde que se ergue para ti;”, escreve o poeta; pega-nos pelos braços com rudeza e aponta: “Vou te mostrar o pavor num punhado de pó.”. Receber, portanto, essa mensagem um tanto quanto pessimista produz também certa sombra – T. S. Eliot e os homens ocos não conseguimos nos eximir da esperança. Se perguntarmos a qualquer um o que significa a poesia nos nossos dias, certamente esse papel será ambíguo, até mesmo contraditório; não só Eliot, mas todos os seus antepassados e seus herdeiros poéticos trazem consigo aquela mesma sensação sem tempo: a leitura e a escrita da poesia são uma comunicação direta e não por isso conseguem comunicar; os poemas se mostram, mas nem por isso se dão a entender inertes e impassíveis.
A poesia se levanta contra o dicionário porque não encontra nele as próprias coisas que são por ele representadas. “Entre ideia / E realidade / Entre impulso / E ato / Cai a Sombra”, o intelectualismo do poeta norte-americano tenta superar justamente a dificuldade de dizer qualquer coisa que não seja mensurada pela mera utilidade da palavra. É necessário se expor a experiência mesma dessa dificuldade: e se fosse possível observar o instante em que, entre duas coisas que se repelem com violência, não surge nada compreensível? A sombra de que fala o poeta não é a do horror com o qual sempre lidamos ou ainda, dirão os materialistas, a fuligem e as terras arrasadas dos primeiros vinte anos do século passado; ao contrário, a terra devastada, os homens ocos, seus quartetos e até mesmo uma canção de amor gravam o brilho de algo que está prestes a desaparecer, a clarividência daquilo que não precisa de predicados que o expliquem.
Essa indefinição é a matéria da poesia de Eliot: já que o mundo não acabará no grito agudo e ensurdecedor, mas com um estalido sutil, é preciso que todos ouçamos com atenção redobrada – o vermelho da belíssima capa da edição que folheio emula essa urgência. *Caio Sarack é mestre em filosofia, professor do instituto Sidarta e do colégio Nossa Senhora do Morumbi
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