O alto índice de letalidade em intervenções da polícia na Bahia tem chamado a atenção nas últimas semanas - foram mais de 60 mortes em setembro -, mas o crescimento dessa estatística não é isolado. Dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostram que as mortes decorrentes de intervenção policial mais do que quadruplicaram a partir de 2015. Naquele ano, a taxa de ocorrências desse tipo era de 2,3 para cada 100 mil habitantes. No ano passado, chegou a 10,4.
Ainda que parte desse aumento possa ser creditado a uma maior notificação dos casos, especialistas que acompanham a questão da segurança pública apontam para um inegável crescimento da letalidade policial no Estado. Em 2015, o número absoluto apontava 354 mortes pela polícia. Em 2022, foram 1.464, o equivalente a quatro por dia, o maior número absoluto do País. A alta é de 313% no período. Comparativamente, a polícia baiana já mata mais do que a do Rio, que deixou 1.330 mortos em operações no ano passado (taxa de 8,3 por 100 mil habitantes).
“A gente não tem apenas percebido, mas também monitorado através de uma parceria que temos com o Instituto Fogo Cruzado”, diz Eduardo Ribeiro, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia. “Há uma participação significativa de agentes do Estado nos tiroteios. (Na média), em 36% dos casos registrados a cada mês na região metropolitana há agentes do Estado envolvidos, e isso tem resultado em altíssima letalidade.”
As mortes decorrentes da ação de agentes do Estado acompanham um crescimento dos índices gerais de violência. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no mês passado, mostram que quatro municípios baianos encabeçam a lista dos mais violentos do País quando são consideradas cidades com mais de 100 mil habitantes. A lista é liderada por Jequié, seguida por Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Camaçari.
“Conversando com alguns atores da sociedade civil da Bahia, a gente tem escutado muito sobre a interiorização da violência. Ela está intimamente ligada à expansão de grupos criminosos organizados”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Essa expansão tenta explicar, por parte da polícia, esse padrão operacional que tem resultado em tantas mortes. É uma ideia de que o Estado, para fazer frente à violência, precisa utilizar a violência.”
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Em julho, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado usou esse argumento ao questionar os dados. “A SSP destaca que não coloca o homicídio, latrocínio ou lesão dolosa seguida de morte praticado contra um inocente, na mesma contagem dos homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos, mortos em confrontos durante ações policiais”, declarou a secretaria na ocasião, em nota encaminhada ao Estadão.
“A gente tem percebido um discurso em que não se contrapõe que a letalidade policial seja um erro, de que a produção de mortes é adequada à ação. O comando da polícia usa ‘letalidade’ na mesma frase que ‘eficiência’ e ‘eficácia’. Isso nos preocupa muito”, afirma Eduardo Ribeiro.
Gabriel Costa tinha 10 anos e brincava há menos de cinco minutos na calçada de casa em Portão, bairro da cidade de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. quando entrou na sala da residência aos gritos - tinha sido baleado no pescoço. A mãe e o pai dele, por medo e luto, se mudaram para a casa de um familiar em outro bairro, e culpam policiais pela morte do menino que sonhava em ser jogador de futebol.
A criança foi atingida por um tiro por volta das 16h do dia 23 de julho. Segundo a família, entre a saída de Gabriel e o retorno já ensanguentado, não houve troca de tiros de policiais com criminosos, mas um tiroteio iniciado por policiais.
Já a Polícia Militar defende que a 52ª Companhia Independente se deparou “com um indivíduo em atitude suspeita que, diante da aproximação das guarnições, iniciou disparos”. Um deles atingiu a criança, que morreu no Hospital Geral do Estado, depois de sofrer uma parada cardíaca.
“Existem inconsistências entre as versões apresentadas pelos policiais e as demais provas produzidas até então. Em razão das contradições, outros procedimentos investigatórios ainda devem ser realizados”, defende Frederico Loureiro, advogado da família Costa no caso.
Os três policiais militares envolvidos na ação que provocou a morte da criança foram afastados do trabalho nas ruas. Um laudo de balística é realizado para descobrir quem disparou o tiro que matou Gabriel, mas a PC solicitou, na última terça-feira, 22, prorrogação para o término da apuração do caso.
‘Não tenho mais a pessoa que me aguardava chegar do trabalho, que fazia chamadas de vídeo para me mostrar as crianças’
Todos os dias, João Miguel, de 2 anos, pergunta à mãe pelo pai, Givanildo Lino. A criança não consegue entender a ausência dele, mas nem ela consegue explicá-la. “Não tenho forças para responder”, desabafa Maira Pinheiro, de 32. O marceneiro, com quem ela teve três filhos, foi morto no dia 11 de março deste ano em Portão, bairro da cidade de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. A família dele culpa a Polícia Militar baiana pela morte.
Quase seis meses depois da morte do marido, Maira permanece sem respostas, como o filho João. “Não tivemos acesso nem ao resultado do exame balístico que foi realizado (pela Polícia Civil)”, diz a operadora de caixa do supermercado. Givanildo morreu na frente da marcenaria onde trabalhava, durante uma ação policial. Ele e Maira estavam a cinco dias de comemorar 11 anos de casados e o primeiro aniversário do filho mais novo.
O marceneiro saía do trabalho, por volta das 14h de um sábado, quando policiais militares o abordaram. A família e a comunidade afirmam que ele foi confundido com um criminoso e, por isso, morto por policiais sem oferecer resistência. Na mochila de Givanildo, estavam materiais de trabalho, como uma furadeira.
A PM da Bahia afirmou que realizava rondas no bairro de Portão, quando avistaram homens armados que começaram a disparar contra os agentes. A corporação declara que só quando a troca de tiros terminou, os policiais encontraram Givanildo caído. Ele foi levado ao Hospital Geral Menandro de Faria, mas não resistiu aos ferimentos.
“Todos os dias vivo um déjà vu de sofrimento. Hoje, não tenho a pessoa que me aguardava chegar do trabalho, que me fazia chamadas de vídeo para me mostrar as crianças”, lamenta a viúva, que agora cria os filhos com ajuda de familiares, como a irmã e o cunhado.
A Polícia Civil (PC) finalizou o inquérito sobre a morte de Givanildo e encaminhou o documento ao Ministério Público da Bahia (MPBA) em julho, com os depoimentos de doze pessoas e os laudos periciais. O órgão, no entanto, solicitou novas investigações relacionadas à apuração do caso na Corregedoria da PM.
Subnotificação de casos pode ter impacto nas estatísticas
Parte do aumento de mais de quatro vezes nos índices de letalidade policial num intervalo de oito anos tem a ver com uma maior notificação de casos, mas não se sabe ao certo o quanto isso representa.
“A Bahia é um Estado em que, historicamente, tivemos muita dificuldade em sistematizar os dados de morte por intervenções policiais. Não estou dizendo que não cresceu; acho que houve esse crescimento nos últimos anos, mas a gente sabe que existe uma melhora nessa informação”, ressalta Samira Bueno, do FBSP. “Hoje a gente trabalha com uma informação que é mais transparente.”
Ainda assim, Eduardo Ribeiro, da Rede de Observatórios da Segurança, faz ressalvas quanto aos dados divulgados. “A SSP precisa investir numa melhora significativa na produção de seus dados da segurança, que é precária e pouco transparente. Isso ajudaria a direcionar o investimento na segurança pública”, considera.
Governador da Bahia entre 2015 e o ano passado, e atual ministro da Casa Civil do governo Lula, Rui Costa (PT) diz não reconhecer os números levantados pelo FBSP. “Eu não reconheço, me desculpe, nenhum parâmetro, nenhuma comparação, de ONGs que fazem publicações sobre segurança”, afirmou recentemente, em entrevista à Globonews. “(Não reconheço) porque estamos comparando coisas diferentes, melancia com abacaxi”, acrescentou, alegando que não haveria padronização de dados entre os Estados.
A qualidade do dado foi defendida pelos diretores da organização, que ressaltaram a transparência da metodologia. “É um erro brigar com os dados. Debater na arena pública é também discordar mas jamais desqualificar e ver a sociedade civil como inimiga ou ilegítima para colocar os dedos nas feridas”, escreveu Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum, no Twitter ao comentar o tema.
Secretaria vê queda no semestre e cita violência contra policiais
Procurada pelo Estadão para comentar os índices de letalidade na Bahia, a SSP informou esta semana que “o número de mortes por intervenção policial apresenta declínio” no Estado. Segundo a pasta, “no primeiro semestre de 2023 foram registrados 5,8% casos a menos que no mesmo período de 2022″.
As mais de 30 mortes em ações envolvendo agentes do Estado ocorreram entre o final de julho e o início de agosto, e portanto não foram contabilizadas naquela estatística. No sábado passado, houve mais quatro.
A SSP também apontou para um alto índice de violência cometida contra policiais. “Nos últimos dois anos e meio, cerca de 200 viaturas foram atingidas por disparos de arma de fogo durante ações ostensivas de combate ao crime organizado. Cento e oito policiais militares acabaram feridos após ataques dessas organizações criminosas, o que salienta o clima de beligerância entre facções”, declarou a secretaria.
O que fazer para diminuir a letalidade policial na Bahia?
Na avaliação de Eduardo Ribeiro, três medidas precisam ser tomadas para que as mortes decorrentes de intervenção de agentes do Estado diminuam. Duas delas estão ligadas diretamente a ações do governo.
“No curtíssimo prazo, é preciso um maior controle de atividade policial com instalação de câmeras nas fardas, que já está em teste na Bahia”, considera.
“A gente também precisa mudar a lógica mesmo. Segurança pública não pode ser pensada só pela polícia. As outras secretarias de Estado, como a de Educação e de Direitos Humanos, precisam atuar conjuntamente para a estratégia preventiva.”
Outro ponto passa por um maior interesse da própria população. “A sociedade não está mobilizada o suficiente para se contrapor a isso, mesmo que ela seja a mais afetada. (A violência policial) não se concentra em um único bairro, mas em toda a capital”, sustenta ele.
A Secretaria de Segurança Pública informou que realiza “constantes investimentos em equipamentos, capacitação, tecnologia e inteligência para as forças de segurança do Estado, buscando sempre como principal objetivo a preservação de vidas”. A pasta acrescentou que a orientação “é para que as forças de segurança atuem sempre dentro da legalidade”.
Sobre as câmeras nas fardas, a SSP informou que está realizando provas de conceitos dos equipamentos com a empresa que venceu a licitação. “Na prova de conceito serão avaliados, dentre outros pontos: a qualidade das imagens e dos áudios captados durante atividades preventivas e ostensivas; autonomia das baterias; resistência; transmissão e armazenamento de imagens.”
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