Polícia do Rio relata avanço do Comando Vermelho e culpa restrição do STF a operações

Em relatório do CNJ, corporações destacam ampliação de domínio do CV e intensificação das disputas com milícias. Decisões ‘potencializam controle das ações de segurança’, diz Supremo

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As polícias do Rio disseram ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que as restrições impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a operações em favelas fizeram o Comando Vermelho ampliar seu domínio territorial, aumentaram disputas entre facções e milícias e favoreceram a migração de criminosos vindos de outros Estados para comunidades cariocas. Entidades têm ponderado que as medidas foram adotadas pela Corte em contexto de elevado grau de descontrole e letalidade das ações policiais.

As informações foram concedidas pela Polícia Civil e Polícia Militar a conselheiros do CNJ no âmbito de relatório elaborado por um grupo de trabalho que esteve em cidades fluminenses neste ano. O grupo foi instituído em atendimento a decisão do ministro Edson Fachin, que é o relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, de autoria do Partido Socialista Brasileiro (PSDB) e que tramita na Corte desde 2019.

Policial participa de operação na Rocinha, na zona sul do Rio Foto: Wilton Junior/Estadão - 26/03/2018

Nesta quarta-feira, 10, ao receber o relatório, Fachin disse ser preciso destacar que as decisões proferidas no âmbito da ADPF 635 “potencializam as medidas de controle das ações de segurança pública por parte do Estado do Rio de Janeiro”, de acordo com nota divulgada pelo Supremo. “A atividade policial é importante e não pode ser obstada, mas ela está sujeita ao controle externo e fiscalização. Até o momento, o governo do Rio de Janeiro não cumpriu com as obrigações que foram determinadas a ele”, declarou o ministro.

  • Os primeiros desdobramentos da ADPF ocorreram durante a pandemia, em 2020, quando operações policiais em comunidades do Estado do Rio foram limitadas. Fachin determinou então que o governo apresentasse plano com medidas para reduzir a letalidade policial e para controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança.

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“A limitação das ações policiais ocorreu em função da escalada da violência e do agravamento das possíveis inconstitucionalidades encontradas na política de segurança pública do Estado naquele período”, detalhou o CNJ ao divulgar o relatório elaborado em 2024.

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Ao questionar a Polícia Civil fluminense, o grupo de conselheiros do CNJ recebeu um relato da atuação de facções e milícias.

“Já estando os territórios economicamente desejados pelas facções criminosas ocupados, o que atualmente se observa no Rio de Janeiro é um efeito ‘rouba-monte’, dependendo a expansão de um grupo criminoso da tomada de territórios de outros grupos. Ante o exposto, todos os grupos criminosos relacionados, milícias e tráfico, frequentemente entram em conflito por controles territoriais e também estabelecem alianças para enfrentar seus rivais. Tais alianças envolvem atualmente inclusive milicianos e traficantes”, afirma o ofício.

A dinâmica de disputa entre grupos criminosos organizados no Rio já ocorre há décadas. O que a polícia ressalta seria a intensificação dos conflitos. “Após a implementação da ADPF 635, que impôs restrições à atuação policial, houve aumento significativo nos confrontos territoriais. Ficou evidente que o Comando Vermelho, a maior organização criminosa do Rio de Janeiro, está expandindo suas operações e buscando maximizar seus domínios territoriais”, exemplificou a Polícia Civil.

Segundo o órgão, os integrantes do CV “têm empreendido guerras por disputas territoriais em toda a zona oeste, buscando assumir o controle total de áreas como Gardênia Azul, Rio das Pedras, Muzema, Tijuquinha, Morro do Banco, César Maia e Terreirão, o que provocou uma desordem em toda a região da Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Itanhangá, Jacarepaguá e Vargens, aumentando significativamente a sensação de insegurança da população”.

  • Segundo a Polícia Civil, em 2020 foram registradas 114 disputas territoriais entre grupos criminosos no Estado do Rio. O total subiu para 289 em 2021 e 315 em 2022.

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No ano passado, três médicos foram assassinados em um quiosque da praia da Barra da Tijuca. A investigação apontou que eles foram mortos por engano em meio a uma disputa acentuada entre criminosos na região. Na oportunidade, dados de tiroteios e mortes evidenciavam a intensificação da violência na área.

Também questionada pelo grupo de trabalho do CNJ, a Polícia Militar deu resposta semelhante à da Civil.

“Um fenômeno que coincide com a vigência da liminar exarada no âmbito da ADPF nº 635 foi a expansão territorial do Comando Vermelho, que invadiu diversas comunidades, em especial na região da grande Jacarepaguá, Vargem Grande e Vargem Pequena. Essa expansão do CV recrudesceu o domínio territorial armado nessas regiões, com a implementação do modo de operação do Comando Vermelho nesses locais, como a instalação de barricadas e o aumento de confrontos armados contra as forças de segurança, resultando em aumento da vitimização policial.”

A PM vê “escalada bélica” na região com início no primeiro semestre de 2022, quando traficantes de drogas vinculados ao Comando Vermelho iniciaram investida em diversas comunidades que anteriormente sofriam influência de grupos paramilitares.

“De lá para cá o CV conseguiu expulsar os milicianos das seguintes comunidades: Santa Maria, Teixeiras, Jordão, Covanca, Caixa D’água, Tirol e Gardênia Azul. Atualmente milicianos retomaram a Gardênia Azul e criminosos do Comando Vermelho estão realizando vários ataques para expulsar novamente a milícia”, acrescentaram

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A PM estima que 1.659 áreas do Rio estão sob domínio de grupos criminosos, sejam traficantes, milicianos ou envolvidos com o jogo do bicho. A corporação também estima que 56,5 mil pessoas tenham acesso a fuzis e outras armas de guerra, diariamente, em suas atividades ilícitas.

Quais foram as medidas adotadas por Fachin e pelo STF sobre operações policiais no Rio?

  • Em junho de 2020, o ministro determinou a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia, “salvo em casos absolutamente excepcionais” que deveriam ser justificados por escrito e comunicados ao Ministério Público do Estado. A medida foi referendada em plenário.
  • Em agosto de 2020, a Corte restringiu o uso de helicópteros nas operações apenas a casos de estrita necessidade. Na oportunidade, o emprego das aeronaves como plataformas de tiro direcionados às favelas era motivo de críticas por entidades.
  • Na mesma data, o Plenário havia decidido que o Estado orientasse seus agentes de segurança e profissionais de saúde “a preservar todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação”.
  • No caso de operações em perímetros de escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, a Corte determinou que deveriam ser observadas as seguintes diretrizes, como detalhado em nota: “a absoluta excepcionalidade da medida, devendo o comando justificar as razões concretas para as ações e enviá-las ao Ministério Público em até 24 horas; a proibição de utilização de qualquer equipamento educacional ou de saúde como base operacional das polícias civil e militar”.
  • Em fevereiro de 2022, o plenário determinou que o Estado encaminhasse ao STF um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança.
  • Foi estabelecido na oportunidade que o “uso da força letal por agentes do Estado só deve ocorrer depois de esgotados todos os demais meios e em situações necessárias para a proteção da vida ou a prevenção de dano sério, decorrente de ameaça concreta e iminente”, como detalhou o Supremo.
  • Em junho de 2023, Fachin manteve determinação, que já vinha de 2022, de instalação de câmeras nas fardas e equipamentos de geolocalização (GPS) de policiais, “além de gravação em áudio e vídeo em viaturas policiais do estado, mesmo para equipes da polícia especializada como Bope e Core”, como detalhou na oportunidade a Corte.

Em comunicado divulgado nesta semana, Fachin disse que pretende levar o mérito da ADPF 635 para julgamento no plenário do STF ainda no primeiro semestre deste ano.

Migração de criminosos

A movimentação de criminosos pelo País e até para o exterior sempre foi comum no período de vigência das restrições, afirmou a Polícia Civil. “Antes da ADPF 635, já havia criminosos do Rio de Janeiro atuando em outros Estados, e vice-versa. No entanto, após a implementação dessa medida, observamos significativa migração das lideranças do tráfico de drogas de diversas regiões do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste para o Rio de Janeiro”.

Segundo a Polícia Civil, “esse fenômeno resultou em um aumento expressivo no número de líderes criminosos de outros Estados sendo capturados aqui. Levantamento realizado pela Polícia Civil indica que, até o presente momento, 99 criminosos oriundos de outros Estados foram presos ou faleceram em confronto com as forças de segurança, no Estado do Rio de Janeiro, desde 2021″.

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Para a polícia, a “situação é prejudicial tanto para o Rio de Janeiro, que enfrenta uma concentração crescente de criminosos, quanto para os Estados de origem desses indivíduos. Aqui (no Rio) eles se sentem impunes e confortáveis para emitir ordens cada vez mais violentas, como observamos nos ataques ocorridos no Amazonas, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte e Espírito Santo”.

A Polícia Civil dá o exemplo do criminoso conhecido como Leo 41, que atua no Pará e estava escondido no Rio.

“Ele foi neutralizado em uma operação conjunta, junto com seu grupo, e, durante a ação, 13 fuzis foram apreendidos em São Gonçalo. Segundo a Polícia Civil do Pará, Leo 41 era acusado de estar envolvido em dezenas de homicídios naquele estado. Sua sensação de impunidade o levou a ordenar ataques contra as forças de segurança pública no Pará, resultando na trágica morte de mais de 40 policiais”, afirma o relatório da instituição.

“A migração de criminosos de outros Estados para o Rio de Janeiro após as restrições impostas pela ADPF 635 pode ser facilmente observada ante os numerosos episódios de crimes, prisões, confrontos, ordens para a prática de delitos em seus estados de origem, etc. noticiados na imprensa”, conclui a polícia.

Controle

A ADPF 635 foi protocolada no Supremo Tribunal Federal em 2019 pelo PSB. A intenção era estipular rotinas e proibições para evitar que as polícias Militar e Civil realizassem operações em favelas que colocassem em risco os moradores.

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Ações perto de escolas em horário de aulas, sequências de tiros disparados de helicópteros e outras condutas que ampliam o risco aos moradores da comunidade deveriam ser proibidos.

Após uma operação em que um policial e 27 suspeitos foram mortos na favela do Jacarezinho, na zona norte, o STF determinou que ações policiais em favelas fossem realizadas apenas em circunstâncias “excepcionais”.

No relatório encaminhado ao STF, o grupo de trabalho do CNJ recomenda que o Supremo esclareça o que são essas circunstâncias, para delimitar de forma objetiva os casos.

“O trabalho de campo revelou que a ADPF nº 635 representa verdadeiro divisor de águas no tema da letalidade policial, não apenas em razão das vidas que já fez poupar, mas, sobretudo, em razão da movimentação institucional que acarretou, abrangendo a formulação e o aprimoramento de protocolos de atuação, a criação de novas estruturas e o aumento de investimentos”, pontuaram os conselheiros no relatório.

Apoio

A chamada ADPF das Favelas tem o apoio de diferente entidades e movimentos, como a Conectas, Justiça Global, Redes da Maré e Defensoria Pública do Rio. Grupos de pesquisas voltados à segurança pública, como o Observatório de Favelas, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), Maré Vive, Instituto Marielle Franco, Conselho Nacional de Direitos Humanos e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) também defendem a ADPF.

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O movimento quer que operações próximas a escolas, creches hospitais e postos de saúde ocorram por “absoluta excepcionalidade”. Também defende que não sejam disparados tiros a partir de helicópteros, maior rigor na expedição de mandos de busca e apreensão, exigência do uso de câmeras e gps em viaturas e agentes de segurança, entre outros.

Artigo publicado no site Redes da Maré defende a ADPF. “É um instrumento jurídico, com objetivo de impedir que o poder estatal pratique condutas que firam a Constituição e ataque os direitos da população que vive em favelas e espaços populares, em momentos de operações policiais no estado do Rio de Janeiro”, diz o texto. /COLABOROU MARCIO DOLZAN

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