A Comissão de Juristas Negros da Câmara dos Deputados entregou nesta terça-feira, 30, à Casa um relatório elaborado pelo grupo, que foi criado em meio à repercussão do caso João Alberto, no ano passado. À frente da comissão está o ministro Benedito Gonçalves, único negro entre seus pares no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Gonçalves concedeu entrevista ao Estadão em que comenta o trabalho da comissão, fala sobre sua trajetória e opina sobre temas como a política de cotas: "As políticas afirmativas são apenas uma breve reparação. Não basta oferecer a cota e não fazer acompanhamento".
Nascido no Rio, ele nutriu o sonho de integrar o alto escalão do Judiciário desde a juventude. "Eu acho que nós, negros, quando alcançamos posições de destaque, temos de mostrar humildade, uma esperança e uma perseverança para falar com os demais que o caminho é esse aqui", disse.
O relatório traz propostas de aperfeiçoamento da legislação a partir de um levantamento de projetos de lei que analisou como essas previsões podem ser melhoradas. O trabalho se dividiu em eixos temáticos e tratou de temas como o combate ao racismo institucional no poder público e no âmbito privado, entre outras frentes. Um dos exemplos é o aperfeiçoamento do treinamento policial em relação a questões raciais.
Quais foram as principais análises e propostas após o trabalho feito pela comissão de juristas negros?
Em resumo, podemos falar como ação (a instituição) do Observatório Permanente, que tem por objetivo formar uma comissão mista, de maior representatividade da sociedade civil.
Em 19 de novembro, fez um ano da fatalidade que ocorreu no Carrefour do Rio Grande do Sul e após a morte de João Alberto, uma comissão externa da Câmara, presidida ou chefiada pelo deputado Damião. Ele, com outros deputados, foram a Porto Alegre, na comissão externa, para acompanhar as primeiras investigações.
Vindo de lá, surgiu-se, então, a ideia de fazer um mapa histórico, baseado no fato que ocorreu na véspera do Dia da Consciência Negra, uma lei que tem 50 anos. Criou-se uma comissão formada por 20 juristas negros, com o objeto de propor alterações na legislação para combater o racismo estrutural e institucional.
Os trabalhos deveriam ser concluídos em 120 dias. No entanto, esse tipo de trabalho, com esse tema, ele tem um início, mas não dá para estipular o tempo que ele vai acabar. Ele pode terminar formalmente, mas os debates sobre as questões continuam.
A metodologia, nós dividimos em cinco eixos de grupos temáticos: o primeiro tema é o direito econômico, direito tributário, direito financeiro e questões raciais. Já o segundo eixo é: medidas de combate ao racismo institucional no setor privado; o terceiro, como medidas de combate ao racismo institucional no setor público; quarto eixo sendo sistema de justiça criminal e racismo; e o quinto envolve direitos sociais, sendo trabalho, saúde, educação e cultura.
Nós trabalhamos com audiências públicas, que ocorreram quase todos os dias. Nós ficamos com os trabalhos funcionando. Nessas audiências, nós ouvimos procuradores, ouvidores, sindicatos, confederações, associações comerciais.
Como isso será encaminhado?
A proposta da comissão é pensar metas objetivas, sistema de monitoramento e critério temporal a ser atrelado à comprovação de atingimento dessas metas. São projetos que não interferem na economia, não aumentam a despesa pública. Muito rapidamente, sairão muitas propostas relacionadas à questão policial para a nossa comunidade. Não só aperfeiçoa a legislação, como também introduz nas escolas policiais o cultivo de que somos todos iguais perante a lei, que é um princípio.
Nós temos que preservar a dignidade da pessoa humana. Respeitem a dignidade da pessoa humana. O negro é pessoa, é ser humano e tem de ser tratado de modo igual. Com a ajuda dos consultores da Câmara dos Deputados, a comissão fez um levantamento dos projetos de lei e analisaram como essas propostas poderiam ser melhoradas, levando em conta o problema relacionado ao racismo.
Há o objetivo de criar um observatório, um mecanismo de controle e fiscalização do racismo estrutural. Como esse projeto vai funcionar?
Se a Câmara aceitar a proposta, vamos criar uma comissão mista, de maior representatividade, para um debate sobre a questão da Lei de Cotas e muitos outros temas.
O Judiciário mudou sua postura em relação às demandas das pessoas negras nos últimos anos? Se sim, como?
Temos, claro, uma pressão do movimento negro e da sociedade civil organizada para mudanças de postura em relação à cor da pele. Eu vejo juízes engajados e não são só a questão negra, mas outros crimes, como de gênero. Nós temos uma constituição cidadã, que garante os direitos fundamentais e todos esses movimentos, que vêm exigindo do poder público um comportamento digno. O resultado é esse: uma mudança que ainda está acontecendo.
O número de pessoas em privação de liberdade é majoritariamente negro. Há influência do racismo sobre o sistema prisional? E como vencer isso?
O sistema carcerário é uma preocupação do Conselho Nacional de Justiça, de juízes criminais. Na comissão, nós temos juízes criminais. A preocupação é achar que, pelo colorido da pele, entra como condenado no inquérito. Mas acredito que essa postura está mudando, porque muitos juízes são ativos e combativos, o que influencia no pensamentos de outros magistrados, que antes poderiam pensar de uma forma, mas, agora, de outra. E é por isso que é importante ter as escolas de magistratura nesse processo.
O que acontece - esse é um juízo de valor meu - por que o sistema prisional predomina a raça negra? A raça negra nasce sofrida, nasce na periferia, ela não tem igualdade de oportunidade, então, toda essa miséria leva a pessoa a procurar outros caminhos para matar a fome, entre outras necessidades. Então, em uma linguagem sociológica de alguns, ele acaba sendo produto daquele meio que não deu para ele igualdade de oportunidade.
Outra pauta discutida pela comissão é a questão das cotas raciais, que passarão por revisão no próximo ano. Como estabelecer metas e acompanhamento dessa política pública?
Quando eu fui sabatinado no Senado, os senadores que não eram favoráveis (à Lei de Cotas) indagaram por que eu fui exceção de cota. Na minha época, havia um equilíbrio de demanda e oferta. Desde a escola primária até a universidade, nós tínhamos qualidade e equilíbrio. É por isso que eu defendo que hoje há uma demanda maior e uma oferta menor. A pior política pública é não ter.
As políticas afirmativas são apenas uma breve reparação. A gente começa, mas nunca termina. Somos a maioria da população brasileira, mas não estamos representados. Não basta oferecer a cota e não fazer acompanhamento. Tem de ter cota, mas tem de resolver as outras necessidades do aluno, como alimentação, transporte. O movimento universitário também está vendo a questão. No entanto, ainda é uma política pública que pode entrar nesse Observatório Permanente, paraacompanhar as consequências e efeitos e propor soluções e leis.
Qual foi o impacto das cotas nas universidades no Judiciário?
Elas foram bem-vindas nas decisões que foram tomadas, foram protegidas. E também nós começamos a aplicar cotas em outros segmentos para além da universidade, como no concurso público.
O senhor defende cotas na magistratura e em outros órgãos ligados ao Judiciário? (A política foi instituída na magistratura em 2015 por resolução do CNJ, que destina 20% das vagas a negros)
Eu acho que temos de ter, eu sou a favor de cotas. Sou a favor da reserva de vagas para a magistratura e Ministério Público. Não é favor, mas cumprir um mandamento constitucional.
Quais as consequências da baixa presença de negros no Judiciário?
Pela minha experiência, na hora do julgamento, em respeito à Constituição e às leis, eu vejo de maneira idêntica. Eu vejo o negro e não negro sob o prisma da dignidade da pessoa humana.
A falta de diversidade racial nos tribunais contribui para a manutenção do racismo no sistema judiciário?
Claro. Um exemplo: eu fiquei dez anos como desembargador no tribunal federal do Rio. Saí de lá tem 13 anos. Não tem meu substituto até hoje. Se tivesse cota...Eu estou todos esses anos no STJ e não tenho nenhum par.
Quando o senhor decidiu seguir o caminho da magistratura?
Quando eu fazia contabilidade no ensino médio, tinha uma matéria chamada Direito Usual. Ali, comecei a achar interessante. Um colega meu trabalhava em um banco e queria fazer direito na UFF. Eu ficava pensando como eu ia fazer uma faculdade oficial, que dependia de um bom cursinho...na época, você pagava um valor e fazia o vestibular para várias universidades. Então, quando eu fiz o vestibular, fiz concurso para ser inspetor de alunos.
Entrei na faculdade e passei no concurso. Veio o concurso da Polícia Federal e eu fiz. Eu já pensava em ser juiz. Trabalhava com inquérito. Foi na Polícia Federal que eu me sedimentei e aquilo foi gerando em mim um querer. Resumidamente, fui delegado em Brasília. Fiz concurso para ser juiz federal, depois passei no concurso para os regionais e depois fui desembargador. Tinha o sonho de ser ministro. Tive sorte também, porque eu falo de sorte e dos momentos de oportunidade.
O senhor tem algum episódio durante a sua vida em que o racismo esteve presente? Pode nos contar?
No meu tempo, era diferente. Tinha aquela coisa do tempo militar e tudo, mas tinha racismo. Praticava-se e não tinha ofensa. O ofendido ficava como estava e o ofensor achava normal. Mas essa normalidade está acabando. Eu sempre estive numa posição em que as pessoas queriam cometer, mas não conseguiam, uma sorte que nem todos têm. As minhas posições que alcancei talvez inibiram as pessoas de fazerem atos discriminatórios.
Enquanto ministro do STJ, o senhor já sentiu racismo pelo cargo que ocupa?
Talvez, pelo meu cargo, não. Nunca tive alguém fazendo ato discriminatório comigo direta ou indiretamente.
O senhor é um dos poucos negros no alto escalão do judiciário brasileiro. Como se sente?
Eu acho que nós, negros, quando alcançamos posições de destaque, temos de mostrar humildade, uma esperança e uma perseverança para falar com os demais que o caminho é esse aqui.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.