Ariel Palitz, em passagem esta semana pelo Brasil, compartilhou experiências dos cinco anos em que foi a “prefeita da noite” de Nova York. Por lá, o cargo foi criado pelo prefeito Bill de Blasio para mediar conflitos entre estabelecimentos noturnos e vizinhos, assim como potencializar a vocação da maior metrópole americana.
Por que esse movimento de “prefeitos”, “comissários” e “czares” da vida noturna não chegou ao Brasil? Seria boa alternativa para São Paulo, Rio de Janeiro e mais cidades daqui?
No País, houve discussão sobre o tema na década passada, mas a ideia não foi adiante. Situação não muito distinta se repete em grande parte das cidades latino-americanas — uma das exceções é a colombiana Pereira, de meio milhão de habitantes, que tem um “prefeito da noite”.
No mundo, a pioneira foi Amsterdã, há mais de uma década, com experiência replicada em outras cidades holandesas, como Roterdã e Haia. As estimativas vão de 50 a cerca de 80 localidades adeptas a esse tipo de atividade, como Sydney, Paris e Boston.
No ano passado, a União Europeia criou uma rede de compartilhamento de experiências de gestão noturna entre cerca de nove cidades, batizada de “Cities After Dark”, liderada por Braga (Portugal).
Eventos internacionalmente difundidos pelo mundo, como edições de Noites dos Museus e Viradas Culturais, também se encaixam nessa discussão sobre repensar a vida à noite.
As definições de “prefeito da noite” variam em cada local, algumas com atribuições mais específicas do setor de entretenimento e, outras, com abrangência para serviços públicos e mais demandas. Há casos em que a atuação é mais voltada para controle ou fiscalização, mas grande parte busca potencializar atividades noturnas e resolver problemas históricos do segmento.
A projeção do cargo também é diversa, com exemplos em que há maior cobrança pública por resultados, como tem ocorrido recentemente em Londres, diante da dificuldade de conter o fechamento de pubs e mais estabelecimentos.
Há, ainda, novas adesões recentes, como em Barcelona. Além disso, fora do Brasil, parte dos atores desse setor organiza suas demandas por meio de associações, como na Espanha, na Argentina, na Colômbia, na Austrália e no Reino Unido.
Daria certo no Brasil? Ouvimos 2 especialistas com experiência internacional
O Estadão entrevistou dois dos principais especialistas brasileiros em gestão noturna, com experiência internacional. Ambos avaliam que as cidades daqui também precisam pensar políticas específicas para a vida à noite, mas não necessariamente com a criação de um “prefeito da noite”, mas por meio de uma secretaria, comissão ou outra forma de organização oficial entre diversas pastas do poder público (e em diálogo com representantes da sociedade).
Outro aspecto é a relação dos brasileiros com a rua e a vida noturna, distinta e mais intensa em comparação com as nações desenvolvidas.
Isso porque diversos países da América do Norte e da Europa têm regras de limitação desse tipo de vivência, desde horário mais restritivo de fechamento de estabelecimentos no início da madrugada até proibição do consumo de álcool na rua, por exemplo. E o frio intenso é um desafio adicional para a vivência ao ar livre em determinadas épocas do ano.
Dentro do Brasil, os pesquisadores também notam diferenças. Em algumas cidades, como o Rio, avalia-se que a vivência noturna em certos bairros é consolidada e faz parte da cultura local, como em desfiles de blocos de rua até de madrugada. Difere de várias outras capitais, em que essa vivência ocorre mais em espaços fechados (e privados) e, quando na rua, atrai grande resistência da vizinhança.
“O Brasil é um país com um pouco mais de liberdade, não é regulado no mesmo nível (que países do Norte Global), tem mais noção de vida pública”, diz Jess Reia, ex-integrante do Conselho Noturno de Montreal, consultora em políticas públicas para a noite e professora assistente na Universidade de Virgínia (EUA).
Para ela, o barulho é um problema praticamente universal nesse segmento, e um dos principais motivos para políticas e novas iniciativas relacionadas à noite.
No caso de cidades brasileiras, ela avalia que a segurança e a violência são temas chave. “É uma questão também em outros lugares, mas, no Brasil, é particularmente importante”, compara.
Embora cidades brasileiras não tenham experiências de “prefeitos da noite”, a pesquisadora destaca que toda prefeitura precisa pensar e garantir serviços à noite, desde a limpeza pública até o atendimento à população em situação de rua, por exemplo. “A noite é vista como entretenimento ou descanso, mas há muitas políticas públicas para a noite. É um ecossistema, com hospital, indústria, trabalhadores noturnos...”, pondera.
Para ela, a questão é de olhar sistêmico para essas medidas, com entendimento também da importância da vida noturna para a cidade (e a população). “Não existe um modelo que possa ser adotado para todas as cidades”, diz.
Na avaliação da pesquisadora, um ponto inicial para discutir a gestão noturna é a análise completa de indicadores relacionados à noite, desde dados de segurança até de cultura e transporte público. Isso pode gerar insights sobre demandas e ações conjuntas.
Outro aspecto envolve repensar a realização de eventos e o funcionamento de equipamentos e serviços públicos, como horários de museus, bibliotecas e outros espaços esportivos e de lazer. “Precisa pensar para além da juventude: todo mundo tem direito de frequentar a noite”, destaca.
Ela avalia que a mobilidade é outro fator importante na discussão em grandes cidades brasileiras, como São Paulo, em que parte da população de menor renda mora em bairros afastados e têm acesso limitado ao transporte coletivo na madrugada.
“O metrô para de circular relativamente cedo em São Paulo (entre por volta da meia-noite até cerca de 4h40). Se essas pessoas forem para o centro, tem como voltar? Pensando no tamanho e tempo de deslocamento, pode sair caro com Uber ou táxi”, argumenta.
Os planos também devem considerar as mudanças climáticas. Historicamente, em locais muito quentes, é comum que a população circule mais à noite, por ter sensação térmica mais amena.
“Cidades estão nomeando especialistas dentro da gestão para lidar com temperatura. A noite pode ser um refúgio”, respondeu a professora ao Estadão.
Também pesquisador de gestão noturna, Fernando Burgos avalia que São Paulo tem histórico de problemas e disputas envolvendo a noite. Exemplos ocorrem desde bairros nobres, como Vila Madalena e Pinheiros, na zona oeste, até as periferias, no entorno de pancadões, bailes funk e outros eventos de concentração noturna.
“De um lado, a vida noturna gera empregos, movimenta a economia e o entretenimento, mas também gera transtornos para as pessoas que vivem no entorno”, pondera ele, professor da FGV.
Para Burgos, o olhar para a noite tem mudado consideravelmente em São Paulo a depender de quem ocupa a gestão municipal. “É um erro enxergar a noite só como entretenimento. Querendo ou não, a cidade funciona 24 horas.”
Em quase duas décadas, a capital paulista viveu desde políticas de maior restrição noturna quanto de abertura. Entre os exemplos de repercussão, estão a criação do PSIU, o funcionamento 24 horas da Biblioteca Mário de Andrade — medida descontinuada após dois anos de experiência — e a criação da rede de linhas de ônibus noturnos.
“A cidade teve experiências exitosas, como a Virada Cultural, mas não pode depender só de eventos. Poderia explorar a gestão da noite com atividade físicas, restaurantes funcionando até mais tarde, gerenciar melhor atividades que existem à noite”, defende.
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