O Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa brasileira, tem expandido o envio de cocaína para a África Ocidental para tentar, a partir de lá, diversificar as rotas para diferentes regiões da Europa, onde o grama da droga pode chegar a US$ 85 (R$ 455, na cotação atual). Em países vizinhos ao Brasil, como Colômbia, Peru e Bolívia, a mesma quantidade é comprada de fornecedores da facção paulista por apenas US$ 1 (R$ 5,35).
Em 2022, foram apreendidas 24 toneladas de cocaína na África Ocidental, patamar sem precedentes. Para se ter ideia da influência do PCC, entre os países dessa região, apenas Senegal estava entre os 10 principais destinos do pó apreendido em portos brasileiros em 2018. A partir do ano seguinte, Nigéria, Gana e Serra Leoa também figuraram na lista, em fenômeno que tende a crescer ainda mais.
Esses são algumas das informações reunidas pelos pesquisadores Gabriel Feltran, Isabela Vianna Pinho e Lucia Bird Ruiz-Benitez de Lugo no relatório Ligações Atlânticas: o PCC e o tráfico de cocaína entre o Brasil e a África Ocidental, publicado pela Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc, na sigla em inglês) e traduzido recentemente para o português.
- Conforme o material, o grama de cloridrato de cocaína importado pelo PCC de países produtores sob o valor de US$ 1 chega a custar US$ 35 (R$ 187) no mercado interno brasileiro – o Brasil é o 2º maior consumidor de pó do mundo, atrás dos Estados Unidos.
- Na África Ocidental, o valor da mesma quantidade de cocaína salta para US$ 45 (R$ 240), enquanto em certas regiões da Europa atinge US$ 85. Quanto mais droga chega até lá fora, portanto, maior o lucro da facção com o tráfico internacional.
Os pesquisadores apontam que o PCC entendeu isso rápido, e intensificou o envio de cocaína a partir da metade da década passada, com avanço significativo sobre o Porto de Santos, o maior do hemisfério sul, e maior consolidação nas fronteiras do Brasil com Bolívia e Paraguai após a morte do narcotraficante Jorge Rafaat (2016), considerado até então o “Rei da Fronteira”.
A partir daí, o tráfico internacional de drogas praticado pela facção deslanchou, com o PCC se aproximando inclusive de máfias de outros países, como a italiana ‘Ndrangheta, e consolidando a “atuação de ponta a ponta”, algo característico de grupos de espectro mafioso.
Estimativa do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) aponta que o PCC movimenta US$ 1 bilhão ao ano, em atuação que chama atenção de autoridades brasileiras e, mais recentemente, internacionais. O tráfico transcontinental é central para essa expressiva movimentação de riqueza.
“O Brasil desempenha agora papel proeminente e crescente na logística do tráfico de cocaína latino-americana através da África Ocidental, com o PCC como coordenador”, afirmam os pesquisadores no documento. A atuação da facção, complementam, remonta à dos cartéis mexicanos, tidos como espécies de “guardiões da cocaína” que entra nos Estados Unidos.
O material reforça informações citadas no Relatório Mundial sobre Drogas 2023 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), que deu destaque para o “crescente tráfico de cocaína” no continente africano.
“A maior parte da cocaína na África é apreendida perto da costa. A região, em particular o Oeste da África, é usada como ‘área de transbordo’ para cocaína proveniente da América do Sul destinada à Europa”, diz o documento da ONU, que também destacou como as facções impulsionam outros tipos de crime, como o desmatamento na Amazônia.
Para tentar frear o tráfico, o Porto de Santos, por exemplo, determinou nos últimos anos que contêineres com destino à Europa e África passassem obrigatoriamente por scanners. Mais recentemente, como mostrou o Estadão, países de Ásia e Oceania também começaram a contar com essa medida no porto, em esforço para evitar possíveis rotas em ascensão.
Autoridades brasileiras afirmam que foi ampliada a interlocução com mais portos internacionais, principalmente da Europa, para melhorar o entendimento de onde as drogas estavam escondidas e tentar dificultar o envio de remessas para fora.
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O que faz o PCC ampliar rotas para a África?
Ainda é difícil saber ao certo o que levou o Primeiro Comando a investir mais nas rotas pela África para chegar até a Europa, uma vez que esse movimento é multifatorial. Mas os pesquisadores apontam que a facção costuma se reorganizar para driblar medidas das autoridades.
“Há interceptações telefônicas em operações policiais indicando que traficantes consideram o scanner (para a tomada de decisão)”, diz a pesquisadora Isabela Vianna Pinho, doutoranda pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). “Mas pode haver vários fatores, como o PCC se expandindo e criando alianças com outras máfias para crescer para outros países.”
Apontado como um dos principais responsáveis por aumentar a expressão internacional do PCC na última década, Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, foi preso em 2020 em Moçambique. A hipótese é de que ele estava na África com o objetivo de construir uma rede de distribuição na Europa e, assim, se livrar do pedágio cobrado pela ‘Ndrangheta e pela máfia sérvia.
Como estratégia local, pesquisadores afirmam que tem havido maior diversificação dos portos brasileiros usados para enviar droga para o exterior, com destaque para o de Paranaguá (PR), o de Barcarena (na região metropolitana de Belém) e o de Salvador. Em 2020 e 2021, menos da metade das apreensões em portos brasileiros ocorreu em Santos, o que destoa de anos anteriores, diz Isabela.
Em fase final de pesquisa de doutorado sobre o tráfico no Porto de Santos, a pesquisadora afirma que o foco crescente do PCC no mercado internacional tem reverberado não só na África Ocidental, como em outras regiões do continente.
De 2016 a 2023, entre os dez principais países de conexão da cocaína apreendida no Porto de Santos, Marrocos aparece em 4º lugar, enquanto Senegal e Nigéria também figuram na lista. Já entre os principais destinos (o que não determina que a droga necessariamente será consumida por lá) estão Nigéria e Gana.
Ainda com o destaque para os países africanos, ambas as listas são lideradas por países da Europa, como principalmente Bélgica, Holanda e Espanha. A principal razão é que, além de os dois estarem em pontos estratégicos, são locais que contam com portos bastante relevantes no contexto europeu, com destaque para o de Antuérpia.
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Carro roubado é trocado por cocaína na fronteira
Em outro trecho do relatório, pesquisadores apontam que “provas obtidas a partir do trabalho de campo realizado em países da rede Brasil-África Ocidental têm destacado como a cadeia de valor frequentemente começa não com cocaína, mas com veículos roubados ou de segunda mão, trocados por drogas nas fronteiras sul-americanas”.
Na fronteira com a Bolívia, uma Toyota Hilux roubada, por exemplo, é cotada em 5 quilos de cloridrato de cocaína, aponta o relatório. Um carro convencional, a 3 quilos.
“Os veículos brasileiros roubados são o pagamento para os distribuidores de cocaína na Bolívia, na Colômbia e no Paraguai, uma vez que os carros estrangeiros de luxo são vendidos localmente por preço muito superior ao da cocaína. Para os ladrões de carros brasileiros, passa-se exatamente o contrário: a cocaína rende muito mais do que a revenda de carros roubados no seu país”, descrevem os pesquisadores.
O tráfico internacional se dá, portanto, em meio à coordenação do crime organizado com outras práticas ilícitas. “O PCC não procura estabelecer controle exclusivo nos territórios sob a sua influência. Mesmo nas áreas periféricas de São Paulo, onde o grupo é mais forte, os indivíduos participam no tráfico de drogas independentemente do PCC e não são obrigados a dividir seus lucros com o grupo”, diz o relatório.
Ao mesmo tempo, o relatório aponta que todos esses grupos devem cumprir o regime regulamentar imposto pelo PCC nos territórios. É uma dinâmica observada em algumas regiões da Amazônia, por exemplo, em que autoridades apontam que a facção paulista chegou a atuar como “síndico do garimpo ilegal”, a exemplo do que ocorreu no Território Indígena Yanomami.
Como mostrou o Estadão no último ano, a região tem sido marcada por sobreposição entre o narcotráfico e crimes ambientais, em prática conhecida como “narcogarimpo”. Muitas vezes, diferentes grupos criminosos, ainda que com atuações distintas, se valem de uma mesma rota e uma cadeia de proteção similar para praticar seus crimes em conjunto.
“O PCC busca expansão para pontos importantes da cadeia, sejam logísticos, de infraestrutura, fronteiras e portos. Isso não implica necessariamente um controle armado, mas em certo poder nesses locais, em que eles contam com redes de pessoas que possam pagar para fazer determinadas atividades”, diz Isabela. Essa atuação difere, por exemplo, à do Comando Vermelho (CV), facção carioca considerada mais focada no domínio territorial armado.
Com três décadas de história, o PCC foi fundado em um presídio do interior de São Paulo por um grupo de oito presos e agora é descrito pelos pesquisadores como o “ator mais poderoso do mercado interno de cocaína no Brasil, com cerca de 40 mil membros e centenas de milhares de aliados, bem como o mais importante fornecedor da cocaína que circula através da África Ocidental”.
O relatório aponta que a “análise do PCC tem ficado aquém do seu desenvolvimento, não conseguindo frequentemente compreender o seu alcance global”. Em 2021, a inclusão do PCC no regime global de sanções contra drogas do Tesouro dos EUA – a primeira designação de uma rede criminosa brasileira feita pelos Estados Unidos – sinalizou maior reconhecimento da sua influência internacional. O desafio, agora, é combater de forma mais efetiva o avanço da organização criminosa.
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