Por que alguns negros se definem como morenos? Livro ensina a combater a alienação racial

O processo social e psicológico de desconexão das pessoas com a própria raça é abordado em publicação de pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia. ‘Sobra pouco espaço para olhar para nós mesmos’, diz uma das autoras

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

A empreendedora Andreia Barbosa, de 49 anos, percebia que a palavra “negra” tinha conotação negativa durante sua adolescência. Era quase uma desvantagem. Por isso, ela se dizia “moreninha”. Com a advogada Karina Barbosa, de 25 anos, eram os amigos que diziam que ela era morena. Para não realçar seus traços negros, a analista de diversidade e inclusão Karina Reis, de 32 anos, fugia do sol para não escurecer a pele – até as maquiagens eram mais “clarinhas” - até assumir sua identidade racial aos 25 anos.

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Essas trajetórias de pessoas negras ajudam a entender a alienação racial, processo social e psicológico de desconexão das pessoas com a própria raça. Pretos e pretas não se reconhecem como tal, consciente ou inconscientemente, para evitar preconceitos e discriminação racial. É uma maneira de tentar se adequar a um padrão social para não sofrer, o que gera outros danos emocionais que nem sempre são identificados e tratados.

Os sofrimentos da população preta motivaram as pesquisadoras Bárbara Borges e Francinai Gomes, que estudam a saúde mental de pessoas negras na Universidade Federal da Bahia, a escrever o livro Saber de Mim. “A população negra é tão atravessada pelas questões do cotidiano, como o racismo, a pobreza e a violência, que sobra pouco espaço para olhar para nós mesmos”, diz Francinai.

O autoconhecimento possui uma clara dimensão estética, ligada à maneira como a pessoa se vê no espelho. Quando começou a ascender em um grande banco privado, Andreia ouvia que aquele não era “cabelo de gerente”, nos dias em que usava a textura natural e crespa. Karina Reis alisava os cabelos. Isso não afeta só as mulheres. Homens raspam o cabelo, total ou parcialmente.

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Os sofrimentos da população preta motivaram as pesquisadoras Bárbara Borges e Francinai Gomes, que estudam a saúde mental de pessoas negras na Universidade Federal da Bahia, a escrever o livro Saber de Mim Foto: Lucia Helena

O cabeleireiro e ativista negro Juninho Loes, criador do movimento “Nunca Foi Só Cabelo”, afirma que o resgate do crespo significa empoderamento, desconstrução dos padrões estéticos e autoaceitação. “A transição capilar é dura, mas libertadora. Ela reconstitui o lugar de pertencimento. A pessoa não precisa mais ser outra para ser alguém”, afirma. Francinai concorda. “Para muitas pessoas, assumir o cabelo natural é o início do processo de se tornar negra”.

O mercado de trabalho também é outro território sensível para questões raciais. Luanny Faustino, diretora de Negócios e estrategia da Tree Diversidade, consultoria especializada em diversidade e inclusão, explica que a identidade racial pode ser minada ou potencializada no ambiente corporativo.

“Já fui chamada pelo RH de uma empresa onde trabalhava para alisar o cabelo e usar roupas pretas ou neutras para não chamar tanto a atenção, considerando que eu era a única negra”, diz. “Esse ambiente pode fazer com que algumas pessoas fiquem numa ‘zona de conforto’ e não se autodeclarar negra”.

Embora as pessoas nasçam negras, essa condição é efetivada ao longo da vida. É um sentimento que vai ser determinante para desenvolver a identidade racial ou se afastar das questões raciais para minimizar a dor que o racismo causa. Já foi bastante comum que negros se afastassem de situações étnico-raciais. Hoje é diferente. “Assumir a identidade permite entender melhor nossos problemas e reivindicar nossos direitos”, diz Karina.

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Mito da democracia racial

Bárbara explica que a alienação racial tem relação direta com o mito da democracia racial no País, a crença de que a miscigenação trouxe a união, a mistura e a igualdade para as três raças, sem os conflitos e questões latentes que permanecem ainda hoje.

O processo afeta, portanto, negros, brancos e indígenas, mas de maneiras distintas. Enquanto os negros se desconectam; os brancos reafirmam sua identidade. Por isso, na visão da autora, “eles se escolhem” no mercado corporativo, nas relações profissionais e até nos relacionamentos amorosos.

As escritoras baianas, criadoras dos projetos Pra Preto Ler e Pra Preto Psi, plataformas nas redes sociais que estimulam o autoconhecimento da população negra, também discutem outros sofrimentos psicoemocionais. Um deles é o de pretos e pretas que ocupam espaços majoritariamente brancos. É o “negro único”, aquele que ascende, mas perde as referências com os seus pares. A situação gera mal-estar social, desamparo e frustração.

“Essas vivências de exclusão e violência são raciais, mas não são nomeadas. Isso vai impedir a compreensão, o que aprofunda o sofrimento”, afirma Bárbara.

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Essas vivências de exclusão e violência são raciais, mas não são nomeadas. Isso vai impedir a compreensão, o que aprofunda o sofrimento.

Barbara Borges, escritora

Uma das respostas para esses problemas é o autoconhecimento. Aqui, elas defendem uma clínica psicológica multirracializada, ou seja, o preparo dos profissionais de psicoterapia para compreender a importância da raça dentro do consultório.

A clínica racializada é necessária para atender qualquer sujeito, de qualquer raça, não é só sobre negros procurando psicoterapeutas iguais. “A academia não pode mais transmitir aos futuros profissionais que ‘sofrimento não escolhe raça’ ou que “inconsciente não tem cor”, diz trecho do livro.

Outra estratégia importante para os pretos é o fortalecimento do senso de comunidade. Aqui, as autoras defendem que os negros devem sim continuar ocupando os espaços reservados aos brancos, rompendo o legado colonial brasileiro e contribuindo com uma representatividade crescente. Por outro lado, é fundamental se manter conectado às suas comunidades.

Como como combater a alienação racial

Negro é diferente de moreno

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A filósofa Djamila Ribeiro escreve em seu “Pequeno Manual Antirracista”: “Não tenha medo das palavras ‘branco’, ‘negro’ e ‘racista’”. Se um homem é negro, você pode se referir a ele desta forma. Claro, de maneira respeitosa. Dizer que um negro é moreno é um erro, pois descaracteriza sua identidade racial. “Quando uma pessoa branca se refere a um negro como moreno, pode ser por interesse para que se mantenham as relações do mundo colonial ou por falta de informação”, diz Franciani.

Cuidado com a forma de se comunicar

As pessoas usam a palavra “negão” com naturalidade, mas pode ter conotação pejorativa – da mesma forma que “alemão” para loiros. Muitas vezes, nós reproduzimos termos racistas ou que reforçam estereótipos. Evite expressões como “a coisa está preta”, “cabelo ruim”, “lista negra”.

Pergunte para você mesmo: o que tenho feito na luta antirracista?

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O que você faz ao ouvir uma piada racista? Entender a importância do que você faz, questionar e duvidar do que parece natural são atitudes importantes para evitar a reprodução do racismo. “O antirracismo não é estático. É ação e movimento”, diz a escritora Barbara Borges.

Você tem amigos pretos?

Você tem amigos e amigas pretas na faculdade, no trabalho ou no condomínio? Das blogueiras que você segue, quantas são parecidas com você? Dos casais que você admira, em quantos as trocas amorosas têm pessoas negras? Se for possível, converse com eles sobre as diferenças na forma em que brancos e pretos são tratados. Isso vale também para seus filhos e os amigos dele. A tentativa é de se colocar no lugar do outro e procurar ouvi-lo.

Capa do livro 'Saber de Mim', que aborda o autoconhecimento da população negra Foto: Almedina Brasil

Ficha técnica

Livro: Saber de Mim - Autoconhecimento em escrevivências negras.

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Autoras: Bárbara Borges e Francinai Gomes.

Editora: Almedina Brasil, selo Edições 70.

Páginas: 202.

Preço: R$ 59,00.

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Onde encontrar: Almedina Brasil Amazon.

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