Ilhados, com falta de luz, pouca água e desabastecimento nos mercados, moradores da Grande Porto Alegre têm partido em massa para os raros municípios menos afetados pela chuva extrema e a enchente que atingem o Rio Grande do Sul há mais de uma semana.
O êxodo ocorre principalmente desde o domingo, 5, quando o prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo (MDB), recomendou a migração temporária daqueles que têm casas na praia (para amenizar o desabastecimento) e, também, com o avanço da inundação em mais bairros da cidade na segunda-feira, 6.
Entre aqueles que deixaram a Grande Porto Alegre, há relatos de pessoas que saíram quase repentinamente, ao perceber o avanço das águas perto de casa, assim como daqueles que precisaram de carona diante da inundação da única rodoviária da cidade. Uma família contou ao Estadão que decidiu o destino apenas após sair de casa, quando parou em um estacionamento em uma área seca.
Os gaúchos que conseguiram fugir para áreas mais seguras relatam se sentir “privilegiados” em um contexto de mais de 1,4 milhão de pessoas impactadas, milhares em abrigos e até na rua. A crise humanitária e climática que atinge o Estado deve persistir por tempo indeterminado, diante da lentidão na redução dos níveis da enchente na região metropolitana e previsão de temporais intensos nos próximos dias em grande parte do território gaúcho.
Com diversas vias e rodovias bloqueadas no Estado, a saída em massa gerou congestionamento, tráfego irregular pelo acostamento e trânsito lento nos únicos acessos no caminho para o litoral do Estado e de Santa Catarina, especialmente na ERS-040, na saída de Porto Alegre para Viamão.
A situação se estende por outras estradas. Embora tenham sido atingidas pela chuva extrema, as praias gaúchas e catarinenses não têm sofrido tanto com a enchente histórica quanto outras áreas do Estado.
Em municípios litorâneos, como Capão da Canoa, Torres, Tramandaí e Imbé, os relatos são de um movimento que lembra a temporada de verão. Além de se buscar refúgio em imóveis de veraneio próprios e residências de amigos e familiares, também há aqueles que conseguiram alugar casas e apartamentos de estadia curta, como costuma ocorrer na alta temporada.
Na segunda-feira, com problemas em uma casa de bombas, os moradores dos bairros porto-alegrenses Cidade Baixa e Menino Deus souberam que as águas iriam avançar por meio de uma postagem do prefeito nas redes sociais, na qual sugeria uma evacuação. A publicação repercutiu rapidamente na vizinhança — localizada em uma área de classe média nas proximidades do centro —, gerando grande engarrafamento nas principais vias e preocupação.
As prefeituras do litoral gaúcho têm sinalizado maior movimento de pessoas e algumas medidas para dar suporte em casos de necessidade. Essa parte do Estado tem seis dos dez municípios com mais domicílios de uso ocasional do País.
Nesses locais, imóveis de veraneio e afins superam o total de residências fixas, de acordo com o Censo de 2022, divulgado no ano passado. A lista nacional é encabeçada por Arroio do Sal, com 72,1% dos domicílios com uso ocasional, além das também gaúchas Xangri-Lá, Cidreira, Palmares do Sul (conhecida pela praia de Quintão), Balneário Pinhal e Imbé.
A cerca de 130 km de Porto Alegre, a prefeitura de Imbé apontou ter observado um aumento no fluxo de veículos e recebido relatos semelhantes de comerciantes, especialmente na terça-feira, 7. “As pessoas que estão se deslocando para a cidade, em sua maioria, possuem abrigo em casas de amigos e parentes ou em imóveis alugados”, apontou em nota.
O município destacou que, até o momento, tem conseguido absorver o aumento populacional temporário, como ocorre na alta temporada. “Cabe salientar, contudo, que por se tratar de uma cidade litorânea cuja população aumenta em até 10 vezes na temporada de verão, contamos com uma estrutura que, até o momento, tem se mostrado suficiente para atender a demanda sem qualquer prejuízo à população”, justificou.
A cerca de 150 km da capital gaúcha e um dos principais destinos do litoral norte gaúcho, Capão da Canoa chegou a tratar da migração temporária em uma reunião da prefeitura na tarde de terça. O encontro foi voltado a “discutir sobre a organização e definir o planejamento que irá nortear o trabalho de atendimento às pessoas provenientes de outras cidades, vítimas das adversidades das chuvas”, segundo descreveu o Município.
Em Cidreira, a menos de 60 km de Porto Alegre, foi montado um espaço para destinar doações e prestar apoio a pessoas vindas da região metropolitana que têm familiares, casa de veraneio ou outro vínculo com o município. Segundo a Prefeitura, cerca de 500 pessoas foram atendidas na segunda.
Já Arroio do Sal, a cerca de 180 km da capital gaúcha, tem orientado que as pessoas se cadastrem no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) ao chegar à cidade. “Permitirá o acesso a serviços médicos essenciais e possibilitará o recebimento de benefícios adicionais fornecidos pelo Município, como alimentação, roupas e colchões”, informou em rede social.
Embora o Lago Guaíba tenha começado a baixar aos poucos e o fornecimento de água esteja em restabelecimento em parte dos bairros (após cerca de 85% dos imóveis ficarem desabastecidos), a cidade segue em situação de calamidade. Além disso, há o temor dos impactos dos temporais e da onda de frio dos próximos dias, especialmente pelo lago ser um estuário de importantes rios do Estado.
A Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR) disse em nota ter identificado “intensa movimentação de deslocamento de veículos oriundos de Porto Alegre e região para o interior e litoral pela ERS-040, visto que a rodovia se tornou um dos únicos meios de saída para o litoral e outros destinos”. “Apesar do sistema estar desativado em função do desligamento do data-center (medida realizada pela Procergs), chegamos a monitorar fluxo de até 25 veículos por minuto (intenso) cruzando a praça de pedágio instalada na ERS-040.”
‘Abri o WhatsApp e tinha uma foto da esquina cheia de água’
A estudante de Psicologia Manoella Martins, de 28 anos, conta que sua família avaliava a possibilidade de saída para o interior nos últimos dias após verificar que a residência estava em área propensa a cheias (como mostra mapa de cientistas da UFRGS). A decisão acabou definida, contudo, ao perceber o avanço da água rapidamente na vizinhança.
Na segunda, no Menino Deus, ela havia caminhado ao mercado mais próximo sem avistar resquício significativo de alagamento, a fim de comprar itens para a doação. “Na fila (do caixa), abri o Whatsapp para ver o grupo do bairro. Tem um grupo sobre a enchente. Tinha uma foto da esquina do mercado, com a rua cheia de água. Aí eu saí e já estava tomado de água”, relata.
Manoella voltou para o apartamento da família e, em cerca de uma hora, as cinco pessoas deixaram o local. “Enchemos o carro. Pegamos o que poderia estragar na geladeira e uma mochila de roupa cada um. Fomos para um estacionamento do McDonald’s, para pensar no que fazer”, conta.
Natural de Uruguaiana (na região da fronteira com a Argentina e o Uruguai), o grupo acabou alugando uma casa em Imbé, no litoral. A decisão foi tomada diante das dificuldades para se deslocar pelo Estado em meio aos diversos bloqueios nas estradas. Além dos cinco, o imóvel também vai receber mais dois amigos, também vindos da capital.
Em meio à saída em massa da Cidade Baixa, do Menino Deus e outros bairros da capital gaúcha e localidades vizinhas, a família demorou mais de 6 horas para chegar ao destino final. Normalmente, esse trajeto levaria pouco mais de uma hora.
Do total, cerca de 5 horas foram até a saída da cidade, em um percurso marcado pela emergência que a região vive. “Foi muita ambulância, muita viatura de polícia, muito barco, muito bombeiro. Um caos”, relata. “A minha família está em segurança, mas é muito triste ver (o que acontece no restante do Estado). Espero que as pessoas tenham as suas vidas de volta na medida do possível, porque muitas cidades morreram, mas, graças a Deus, tem muita gente boa salvando as pessoas.”
‘Estava muito envolvida com trabalho voluntário, não queria sair’
A redatora publicitária Jéssica Trisch, de 32 anos, não pretendia sair de Porto Alegre. No Bom Fim, bairro de classe média próximo ao campus central da UFRGS, ela mora em um edifício que não foi alagado, porém começou a sentir os reflexos colaterais da enchente nos últimos dias.
Sem carro e com a rodoviária submersa, ela não tinha uma opção de ônibus intermunicipal com a rota para o local que buscaria em uma situação como esta: a casa dos pais em Osório, município do litoral a cerca de 120 km do centro de Porto Alegre. Por isso, a única alternativa seria pegar uma carona, porém negou a oferta que recebeu de uma amiga no domingo.
Por estar em uma situação considerada “confortável” em meio ao colapso de diversos bairros, ela avaliou que deveria tentar apoiar a população mais atingida. Conta que a maior limitação até então era o desabastecimento de alguns itens no supermercado. “Acabei recusando porque estava muito envolvida em fazer tudo o que pudesse em questão de serviço voluntário. Queria ajudar as pessoas”, conta.
A situação mudou na segunda-feira diante de alguns fatores: não tinha mais fornecimento de água onde morava, com apenas o volume armazenado na caixa d’água; o prefeito havia recomendado a saída da cidade no dia anterior; e recebeu uma nova oportunidade de carona com outra amiga, que deixava a cidade junto da filha e do companheiro. “Vim com uma mala para passar uns 10 dias.”
‘Privilégio de quem faz home office, de conseguir sair’
Também há diversos relatos de pessoas que mudaram de refúgio ao longo da enchente. Moradora do Menino Deus, a jornalista Marina dos Santos Bitencourt, de 29 anos, por exemplo, primeiramente foi para a casa da avó do namorado em um bairro fora da área propensa a enchentes. O imóvel estava vazio, pois a moradora ficou presa em Santa Catarina diante do cancelamento de voos para Porto Alegre.
Marina e o namorado pegaram, então, alguns itens básicos do trabalho, peças de roupas, comida, água e os itens básicos da cachorra de estimação. Tudo calculado para durar de dois a três dias. “Por mais que, por questão de topografia, a água não atingisse o nosso prédio, nós iríamos ficar ilhados”, justifica.
Ela conta que, inicialmente, não pretendia deixar a cidade, mas que mudou de ideia após ouvir a declaração do prefeito no rádio — sobre a saída dos moradores com casa na praia para evitar o desabastecimento da cidade.
Decidiu, então, sair com o namorado para a residência da família, em Osório, de carona com os tios do companheiro, que seguiram para outro município do litoral, onde têm casa. “O que mais nos motivou a vir é que era uma maneira de ajudar quem tinha que ficar em Porto Alegre, quem tinha que trabalhar em Porto Alegre. A gente viu que, às vezes, uma boa ajuda é aquela que não atrapalha”, aponta.
Embora Osório tenha uma parte do território com praia, possui majoritariamente características de interior. Por isso, Marina nota que a população local está com uma rotina de quase normalidade, exceto pela movimentação para recolher doações.
“Acompanhar a situação do Estado em uma das pouquíssimas cidades que praticamente não foi afetada é um mix de sentimentos e emoções. A gente vê resíduos de que choveu muito, o campo está alagado, essas coisas... Mas nada foi afetado, o fornecimento de água, energia, internet e supermercados continuam”, compara.
Para ela, na situação de dificuldade de grande parte da população, está em uma situação privilegiada. “É o privilégio de quem faz home office, de conseguir sair”, constata.
No mapa abaixo, estão marcadas as rodovias estaduais e federais bloqueadas parcialmente (em amarelo) e totalmente (em vermelho) no Estado. A ferramenta do Comando Rodoviário da Brigada Militar apresenta mais informações sobre o local e o motivo do bloqueio (como queda de barreira) ao clicar no ícone, assim como permite a aproximação por meio de zoom.
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