Se terminar o ensino básico já é um desafio para travestis e transexuais, entrar na universidade e seguir carreira acadêmica é um sonho ainda mais distante para grande parte dessas pessoas. Ainda pequena, a presença de professores trans e coletivos de alunos LGBT+ já fazem a diferença e ajudam a trazer mais diversidade, combater preconceitos e pautar novos debates nos câmpus, mas esbarram em problemas estruturais dessa população e resistência de parte dos corpos docente e discente. Professora de biofísica molecular há mais de duas décadas na Universidade Federal do ABC paulista (UFABC), Ana Lígia Scott, de 53 anos, transicionou de gênero no final de 2016. Respeitada na comunidade acadêmica em que já atuava por mais de dez anos quando começou o processo, ela de repente se viu na função de educar muitos dos alunos e colegas que lidavam com o tema pela primeira vez.
“Na época, tínhamos apenas duas estudantes transexuais que eu conhecia. Mas no corpo docente e entre os funcionários, não tinha ninguém. Foi uma novidade”, lembra Ana. Enquanto o processo de transição avançava, ela se viu na obrigação de abrir o jogo com as turmas em que lecionava. “Senti a necessidade de informá-los, porque me conheciam há muito tempo e começaram a me olhar estranho. Escrevi uma carta, colei na porta da sala e chamei os alunos para conversar no laboratório.”
A reação de todos a surpreendeu. “Eles disseram: ‘Mas é só isso? Achamos que ia fechar o laboratório. Estamos felizes por você’”. Alguns colegas do corpo docente, entretanto, foram menos gentis. “A primeira vez que usei o banheiro feminino, sofri piada transfóbica de outra professora. Outros dois colegas se recusavam a pegar o elevador comigo, como se eu tivesse uma doença contagiosa”, lembra.
À medida que as unhas ganharam cor, as roupas mudaram e a transição começou a aparecer no exterior, Ana decidiu adotar seu nome social em todos os sistemas acadêmicos, algo teoricamente possível e imediato nas repartições públicas graças a um decreto de 2015. Foi aí que ela se deparou com a conhecida “transfobia institucional”.
Foram meses de conversa, emails e ameaças de judicialização para que Ana pudesse usar o nome nos sistemas da Fapesp, do CNPq e do Capes, que estão diretamente atrelados à sua função de pesquisadora. “Tive algumas lutas desse tipo pela invisibilidade de pessoas trans, que ainda existe no meio acadêmico, principalmente se for pesquisador. Apesar de toda a institucionalização das regras, as pessoas em si precisam ser educadas e se educarem.” Professora do ensino superior desde 2004, Jaqueline Gomes de Jesus lecionou em uma série de universidades públicas e privadas, antes e depois da sua transição. Hoje, ela compõe o corpo docente do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), em Niterói, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz. Ao longo de sua experiência, Jaqueline conta que o menor dos problemas enfrentados na vida acadêmica foi na sala de aula, onde diz nunca ter encontrado qualquer resistência dos alunos. As seleções docentes que tentou, entretanto, trouxeram uma série de preconceitos nem sempre tão velados. “Em uma das entrevistas que fiz, fui questionada se eu sabia das mulheres trans e negras. Isso chegou a gerar constrangimento nas outras candidatas”, lembra, contando também de outras vezes em que foi desclassificada na etapa de entrevistas presenciais. “As pessoas querem o docente trans como objeto de estudo ou para uma palestra. Mas reparei que nunca me chamavam para os programas de pós na minha área (Psicologia), por exemplo. O problema está na forma como as seleções são feitas.”
Ela também lembra que na primeira seleção da qual participou após a transição teve negado o direito de sequer concorrer à vaga. “Hoje, pelo menos, nunca vão se permitir algo assim, então o panorama melhorou, sim. O que me preocupa é a estrutura, senão teremos um déficit geracional. Eu consegui porque fui muito insistente.”
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a experiência também pioneira de Daniela Balbi não chegou a passar por esses tipos de violência, mas ela acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido até que o meio acadêmico seja de fato acolhedor para pessoas trans. Em 2019, ela se tornou a primeira pessoa transexual a lecionar na instituição secular, quando assumiu o posto de professora substituta na Escola de Comunicação.
“A instituição, a universidade em geral, está mais receptiva ao debate do que era há 15 anos, quando fui aluna da graduação. Com o corpo docente e técnico-administrativo, fiz amigos que vou levar para a vida, que sempre se colocaram à minha disposição, desde o cotidiano da vida prática até se caso houvesse algum episódio de transfobia”, comenta. “Eles faziam questão de me auxiliar em conjunto. Foi um sonho, de certa maneira.”
Ex-aluna da mesma instituição, Dani viu com prazer o crescimento e fortalecimento de coletivos estudantis que pautavam e debatiam a questão LGBT+ de forma mais atuante, o que ela encara como um reflexo dos avanços conquistados pelo movimento social nos últimos anos. “O meio acadêmico está mais preparado do que já esteve, com a universidade se apresentando assim sem medo e sem recalque. Ao mesmo tempo, a pauta não está esgotada. Temos que aumentar a oferta de professores e alunos, mas isso também passa pelo acesso ao ensino básico, porque nossa realidade é de abandono, vulnerabilidade e informalidade.”
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Em 2018, uma pesquisa daAssociação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior(Andifes) apontou que pessoas trans representavam apenas 0,1% de todas as matrículas no ensino superior público. Desde então, uma pequena parte das universidades brasileiras tem adotado cotas especiais para essa população, que ainda não são totalmente preenchidas pela própria falta de candidatos aptos.
Em 2018, a UFABC implementou uma política de oferecer 1,6% das vagas na graduação para a população trans, mas encarou escassez de matrículas. “Isso nos informa que existe um gargalo na educação básica. A EJA precisa de fortalecimento e, enquanto essas pessoas trans não estiverem formadas, vamos pegar as poucas que conseguiram se formar”, aponta Rena Orofino, presidente da Comissão Especial para Pessoas Transgêneras, Transexuais e Travestis (CEPT) na instituição. Ela aponta que, dois anos após a abertura dessas vagas, a UFABC já contava com 60 estudantes autodeclarados trans, um total aquém do ofertado.
Na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), o preenchimento das cotas oferecidas a essa população também passa pelo mesmo problema de baixa procura. Para tentar manter esses estudantes, a instituição passou a oferecer também bolsas de R$ 400, com duração de nove meses.
“Existe uma inscrição que não necessariamente se traduz em matrícula. Sempre aparece alguém aprovado, que não efetiva a matrícula”, avalia Felipe de Paula, coordenador de Políticas de Promoção da Diversidade da UFSB. “Mas entendemos que o princípio da diversidade cultural defendido pela própria Unesco é uma universidade que seja compatível com o sul da Bahia, que tem gente muito diversa.”
Ativistas e acadêmicos trans apontam que, durante a infância e adolescência, essa população passa por um sistema de “abandono compulsório” da vida escolar, motivados tanto pela transfobia de colegas e professores quanto das próprias instituições. As agressões passam desde o acesso a direitos básicos, como o uso do nome social nos sistemas de chamada e boletim ou o uso do banheiro, ao desrespeito à identidade de gênero dos alunos.
Esses ataques dificultam a permanência de pessoas trans no ensino formal e se refletem na vida adulta, quando uma média de 80 a 90% da população trans é empurrada para a “prostituição compulsória” ao menos uma vez, de acordo com estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
“O ambiente universitário, especificamente, carrega uma série de vícios, por ser muito inacessível às camadas mais pobres e às populações preta e travesti”, diz Mycaell Veloso, estudante de Planejamento, de 24 anos, e membro do coletivo Prisma - Dandara Santos, de apoio aos LGBT+. Ele se considera privilegiado por ter começado a transição de gênero após a matrícula na UFABC e contar com o apoio da família. “Só consigo ajoelhar e agradecer, porque sei o quanto isso é raro. Nunca corri o risco de ser expulso (de casa) e isso me fortaleceu para encorajar pessoas que não tiveram o mesmo.”
Hoje, o Prisma tem cerca de 32 membros ativos e luta para ampliar as chances de permanência das pessoas trans e travestis na UFABC, que encaram mais desafios que a média da população ao tentarem ingressar no mercado formal de trabalho.
Um dos membros é Pol Iryo, estudante de Filosofia. Aos 20 anos, ele conta que também transicionou depois de matriculado e encontrou uma “bolha de acolhimento” no câmpus, apesar de isso não ter sido o suficiente para poupá-lo da exposição à transfobia. Especificamente, durante uma matéria eletiva em que a professora cismou de chamá-lo pelos pronomes e gênero errados.
“Ela fazia mesmo sabendo que eu sou trans. Isso dificultou a minha aprendizagem porque eu não conseguia me concentrar na aula e ficava abalado”, conta. “Ela errava na frente de todo mundo. Pensei até em trancar essa disciplina porque não estava conseguindo acompanhar.”
A CEPT tem feito campanhas institucionais de conscientização sobre questões básicas de respeito à comunidade LGBT+, com cartazes que ensinam o significado de cada letra da sigla, quais pronomes usar com pessoas não-binárias e como agir em casos de preconceito. Também ofereceu um primeiro curso de capacitação interna para os professores e servidores, com seis aulas de duas horas cada.
“As pessoas preconceituosas fazem muito barulho, mas não são a maioria”, afirma Rena. “O nosso papel é garantir que a comunidade trans esteja inserida nesse espaço, porque apenas estar na faculdade já permite um estágio e a humanização, uma retomada da dignidade.”
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