Prevenção custa menos e salva vidas: como Brasil deveria aprender com desastre no Rio Grande do Sul

Estimativas mostram prejuízos e danos anuais bilionários causados por eventos extremos no País; economistas, hidrólogos e especialistas em desastres apontam caminhos

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

Sem precedentes em termos de extensão territorial no Brasil, ainda é impossível aferir todo o impacto direto e indireto do desastre ambiental que afetou quase todos os municípios do Rio Grande do Sul. Há certeza, contudo, de que investimentos em prevenção teriam reduzido a crise humanitária, econômica e social em curso, e que permanecerá por anos.

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Por isso, especialistas têm destacado que não basta uma reconstrução tradicional. Mas, sim, uma “reconstrução preventiva”. Isso porque as mudanças climáticas expõem cada vez mais que o Brasil também é propenso a eventos extremos, mesmo fora da rota de grandes terremotos, tsunamis e vulcões.

Como mostra levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM), 94% dos municípios foram afetados por desastres naturais ao menos uma vez entre 2013 e 2023, a maioria por secas e enchentes. Entre os principais setores prejudicados, estão agricultura, habitação, pecuária e obras de infraestrutura, mas os efeitos se estendem por ampla gama de setores, como saúde, educação e a geração de emprego e renda.

O Banco Mundial estima, por exemplo, que o Brasil perde uma média de R$ 13,3 bilhões anuais (com base em dados de 1995 a 2019) com eventos extremos. Os danos e prejuízos são maiores no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, na Bahia, em Pernambuco e em Santa Catarina.

Criação de porcos devastada em Travesseiro, município do interior gaúcho Foto: Nelson Almeida/AFP - 21/05/2024

A situação se repete pelo mundo. Uma das principais referências em dados de desastres naturais, o Centre for Research on the Epidemiology of Disaster da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, catalogou 399 desastres de maior porte em 2023, com 86.473 mortes, 93,1 milhões de afetados e US$ 202,7 bilhões de impacto econômico direto. As enchentes foram a maioria, das quais a principal (na Itália) causou danos e prejuízos de US$ 9,8 bilhões.

A União Europeia teve perda anual média de 15,5 bilhões de euros (calculadas com dados de 1980 a 2022), principalmente ligadas a inundações e terremotos, segundo o Banco Mundial. Já, nos Estados Unidos, só entre 2021 e 2023, os Centros Nacionais de Informações Ambientais (NCEI, na sigla em inglês) contabilizam que 66 eventos extremos causaram 1.690 mortes e US$ 437,9 bilhões de danos e prejuízos.

Da mesma forma, diversas estimativas apontam a importância da prevenção - as cifras variam conforme características do local e do evento extremo. Um compilado de 2019 do Banco Mundial e da Global Facility for Disaster Reduction and Recovery (Plataforma Global para Redução e Recuperação de Desastres, em inglês) apontou que obras de infraestruturas mais resilientes teriam retorno de US$ 4 em benefícios para cada US$ 1 investido, por exemplo.

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Outro relatório das organizações indica que os benefícios são maiores que os custos em cerca de 96% dos casos. Já um levantamento de 2021 da Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNDRR, na sigla em inglês) cita que cada US$ 1 voltado à redução e prevenção de riscos pode poupar até US$ 15 na recuperação pós-desastre.

Restaurante afetado pelas enchentes em Porto Alegre Foto: Anselmo Cunha/AFP - 24/05/2024

Nesse cenário, custos, danos e prejuízos no Rio Grande do Sul são bilionários. O governo gaúcho chegou a falar que o Estado precisará de um “Plano Marshall”, em referência à devastação pós-Segunda Guerra de parte dos municípios gaúchos. Só em reconstrução de pontes e rodovias, são estimados R$ 9,9 bilhões.

Em nota, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha diz que está mapeando os custos dos projetos de reconstrução e que, portanto, não há valor total estimado. “Há uma série de frentes de apuração, inclusive relacionadas a situações em que ainda não houve recuo da água para permitir mensuração mais precisa”, informa. Até agora, a União destinou R$ 62,5 bilhões.

O Estadão procurou especialistas, organizações e publicações com indicativos do que deveria nortear medidas de prevenção e reconstrução. Grande parte das propostas também podem ser considerados por outros locais antes mesmo de um extremo climático dessa magnitude.

‘Não é gasto, é uma oportunidade’

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“O investimento reduz as perdas de grande maneira”, destaca Mariana Madruga de Brito, especialista em gestão de risco de desastres e pesquisadora do Centro Helmholtz para Pesquisas Ambientais, da Alemanha. Investir em prevenção não só evita danos maiores, mas tem impactos positivos adicionais, melhorando a qualidade de vida e gerando empregos. “Não é um gasto, é uma oportunidade”, resume.

Para ela, ainda não há entendimento de parte do poder público em relação a esses ganhos, assim como há temor por não ter resultados sempre evidentes e, às vezes, envolver medidas impopulares. “Em geral, a gestão de risco não é prioridade. Às vezes, é até considerada como risco político.”

Com experiência no Rio Grande do Sul, ela cita que o desastre mais recente evidencia como o planejamento precisa considerar riscos para a capacidade de resposta à tragédia, pois diversos equipamentos públicos foram afetados tanto no interior quanto na região metropolitana, como batalhões de bombeiros, imóveis da própria defesa civil e casas de bombeamento. “Isso não pode acontecer, precisa estar funcionando.”

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Por isso, defende a importância de não deixar a tragédia atual entrar no esquecimento. “É preciso estabelecer a cultura de lembrar. As memórias podem criar uma cultura de conscientização, de que isso aconteceu, que está presente e pode acontecer de novo”, ressalta.

Fábrica da Coca-Cola em Porto Alegre foi afetada pelas enchentes Foto: Amanda Perobelli/Reuters - 19/05/2024

‘Seria muito melhor uma política de prevenção do que arcar, agora, com impactos’

Referência em economia dos desastres e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Vinícius Halmenschlager pondera que é difícil mensurar quanto se gastaria em prevenção para evitar um impacto dessa proporção. “Cada localidade tem suas especificidades, sua cultura, um tipo de desenvolvimento econômico, social”, explica. “A despeito de não saber o valor, os custos dessa catástrofe deixam muito evidente que é necessária e que seria muito melhor uma política de prevenção do que arcar, agora, com impactos.”

O economista destaca que há impactos diretos e indiretos, tanto imediatos quanto meses e anos depois. “Efeitos em cadeia: rompimento da atividade comercial, infraestrutura, uma série de atividades econômicas deixam de ser desenvolvidas, questões de saúde não atendidas. São custos indiretos e difíceis de serem mensurados”, diz. “Os valores tendem a ser subestimados.”

Alguns lugares envolverão mais reconstrução; outros terão mais recuperação, pois menos infraestrutura foi perdida. “Para doenças distintas, remédios distintos. O primeiro desafio é a elaboração de políticas que atendam as diferenças.”

Hospital de Pronto Socorro foi tomado pela inundação em Canoas, terceira cidade mais populosa do Rio Grande do Sul Foto: Diego Vara/Reuters

O professor cita que pesquisas indicam impacto econômico ao menos de um a cinco anos, mas pode ser maior a depender de como o desastre é gerenciado, considerando as necessidades e características de cada área. Por isso, medidas para uma reconstrução não podem ficar restritas a curto prazo. “Não podem ser tampão.”

Também especializado em economia de desastres e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Felipe Garcia defende que o Estado “precisa buscar o que há de melhor no mundo”, para não ficar estigmatizado como lugar vulnerável e inseguro para investir diante da crise climática. “Isso é essencial para o Rio Grande do Sul ter algum futuro”, salienta.

Garcia fala na necessidade de mitigar a migração de pessoas e empresas e dar segurança para novos investimentos. O cenário é ainda mais preocupante em regiões muito afetadas pelos ciclones do ano passado, especialmente os de junho, setembro e novembro, como o Vale do Taquari.

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Pesquisador dos efeitos das enchentes e deslizamentos no Vale do Itajaí, de 2008, ele cita que o desastre catarinense teve impacto no PIB local por ao menos cinco anos. No caso gaúcho, em que a situação fiscal é expressivamente mais vulnerável e os danos abrangem território maior, a recuperação deve ser ainda mais difícil. “Esses desastres têm efeitos duradouros, com o empobrecimento da população, pessoas que vão para a informalidade.”

Plantação destruída em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre Foto: Amanda Perobelli/Reuters - 09/05/2024

Como Porto Alegre deve se preparar? Professor que alertou sobre riscos lista 4 etapas

“Este documento procura demonstrar que os riscos existentes em 1941 continuam os mesmos”, alertava o hidrólogo Carlos Tucci em artigo publicado há 25 anos. Consultor e professor aposentado da UFRGS, foi procurado pela prefeitura no ano passado para estimar o custo de recuperação das casas de bombeamento da água do sistema antienchente da cidade, o que então custaria cerca de R$ 400 milhões. Agora, com os danos ainda a serem aferidos, o valor será superior.

(O sistema) Não funcionou, senão não teríamos inundação”, diz ele, diretor de hidrologia da Rhama Analysis, consultoria que fez os mapas de inundação da capital gaúcha nos primeiros dias após as chuvas em uma força-tarefa com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da UFRGS. “Se tivesse trocado (o que estava com defeito) antes, não teria problema.”

Diante do colapso do sistema contra cheias, o hidrólogo propõe quatro etapas para fortalecer o sistema contra cheias extremas. Segundo ele, envolvem “coisas simples” — “não é ‘high tech’”, diz —, como instalar válvulas, melhorias na parte elétrica etc. São elas:

  • Inspeção e diagnóstico: avaliação da estrutura antienchentes e verificação da topografia, a fim de identificar problemas pré-existentes e causados pela cheia;
  • Anteprojeto de recuperação: recuperação do sistema antienchentes, com melhorias mais simples, como eventual alteamento de parte dos diques (barreiras de contenção), por exemplo;
  • Estudo de modernização: apresentação de propostas de melhorias ao sistema antienchentes, o que pode envolver mudanças mais estruturais e até ampliação para mais bairros ribeirinhos;
  • Plano de Contingência e Emergência: entrega de um conjunto de orientações para procedimentos, comunicação e tomada de decisões em eventos extremos.

O hidrólogo estima que só recuperar as estações de bombeamento, as comportas e outras medidas básicas custará entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão. Ações adicionais envolveriam investimento maior, como a ampliação da rede de proteção para bairros ribeirinhos hoje não atendidos na zona sul, por exemplo.

Um dos símbolos de Porto Alegre, Largo dos Açorianos e Centro Administrativo Fernando Ferrari (do Estado) foram inundados Foto: Diego Vara/Reuters - 07/05/2024

Além disso, cita outra medida que deveria ser tomada em todos os Estados: monitoramento e previsão de risco hidrológico, a qual seria feita com base em dados topográficos, com a possibilidade de simular efeitos da chuva e do vento na elevação dos rios e eventuais riscos para áreas ribeirinhas. “Não é um custo significativo, basta querer fazer. Para um orçamento estadual ou federal, é ‘trocado’. Não chega na casa de bilhão (de reais).”

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Tucci analisa que os problemas na Grande Porto Alegre poderiam ser mitigados e evitados com sistemas antienchentes eficazes. Se o da capital falhou, os de outras cidades tinham proteções abaixo do nível de elevação dos rios neste evento extremo (como em Canoas, uma das mais afetadas). Além disso, parte dos municípios sequer tem essa proteção (como Eldorado do Sul, quase todo submerso).

Em geral, o consultor também fala em estudos de bacias, de modo a propor intervenções de drenagem para além das zonas ribeirinhas. Para Porto Alegre, chegou a propor um que custaria R$ 4 bilhões.

Além disso, explica que esse tipo de proteção não é indicado para o Vale do Taquari, por exemplo, onde as cheias devastaram cidades como Lajeado, Arroio do Meio e Cruzeiro do Sul. Como o Estadão mostrou, alguns municípios até estudam mudar de local após as cheias deste ano e de 2023.

“É outro cenário. Lá, não tem como fazer a obra, porque a bacia é grande e a velocidade é alta. Não tem como fazer reservatório ou dique. Custaria uma fortuna”, afirma. Nesse caso e no de locais com histórico de deslizamentos (como em parte da Serra Gaúcha), diz que medidas mais indicadas envolvem sistemas de previsão e alerta hidrológico, assim como o zoneamento de áreas de risco (com restrições de ocupação) e o reassentamento de parte da população.

Destruição em Roca Sales, um dos municípios mais afetados no Vale do Taquari Foto: Diego Vara/Reuters - 04/06/2024

Como está o Rio Grande do Sul agora?

Após mais de um mês, o Rio Grande do Sul retomou parte dos serviços, mas ainda vive reflexos diretos das enchentes. O total de afetados passa de 2,3 milhões de pessoas em 476 dos 497 municípios gaúchos.

Nesta quarta-feira, 5, dois dos principais cursos d’água seguiam acima da cota de inundação: o Rio Jacuí, na Região dos Vales, e a Lagoa dos Patos, na parte sul. Com os deslizamentos e as quedas de pontes, ainda há 59 trechos com bloqueios totais e parciais em 34 rodovias estaduais e federais, segundo o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer).

Na rede estadual, 133 escolas (5,8% do total) ainda não retornaram às aulas, o que representa 53,4 mil alunos, segundo balanço do Estado.

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Não há previsão para o retorno do Aeroporto Internacional Salgado Filho, de Porto Alegre. Uma malha emergencial foi implementada na Base Aérea de Canoas (voltada especialmente a São Paulo), assim como foram aumentados voos para aeroportos do interior do Estado e de Santa Catarina.

Enchente no bairro Mathias Velho, o mais populoso de Canoas, na região metropolitana Foto: Amanda Perobelli/Reuters - 05/05/2024

Já o trem metropolitano retomou parcialmente, mas sem perspectiva de retomar operações para Porto Alegre neste ano.

Em relação às barragens, a Barragem Salto, em São Francisco de Paula (na Serra) continua em nível de emergência, com “risco de ruptura iminente”, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A agência e o Estado monitoram, ainda, cinco barragens em nível de alerta (como em Bento Gonçalves, na Serra) e oito em atenção (em cidades como Viamão, na região metropolitana, e Canela, na Serra).

Além disso, com as enchentes, o Estado teve alta nos casos de leptospirose, com ao menos 13 mortes confirmadas e 7 em investigação até a terça-feira, 4. Ao todo, mais de 3,6 mil casos foram notificados - 242 confirmados.

Segundo a Receita Estadual, 91% dos estabelecimentos contribuintes de ICMS do Estado estão em municípios em calamidade ou emergência, o que representa 27% da arrecadação gaúcha. O boletim econômico-tributário semanal de 31 de maio aponta que a última semana teve queda de 16% no número de fabricantes que emitiram nota fiscal ante o mesmo período do mês anterior. A redução chegou a 37% no auge da crise.

O volume de vendas na indústria caiu 27,6% em maio em relação ao mesmo mês de 2023. O impacto foi maior na produção de insumos agropecuários (-47,1%), metalmecânico (-35,7%), pneumáticos e borracha (-34,5%), madeira, cimento e vidro (-31,8%) e coureiro-calçadista (-30,9%). O único setor com variação positiva foi o de tabaco, com aumento de 4,9%.

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