Uma das principais formas de atuação do governo brasileiro na África é a cooperação técnica, que transfere políticas e tecnologias nacionais, sobretudo nas áreas de saúde, agricultura e educação. Na última década, foram 600 iniciativas em 43 dos 54 países africanos. Os projetos são considerados um diferencial do Brasil em relação a outros países que apoiam o desenvolvimento da África, como os europeus e a China, mas enfrentam dificuldades.
As duas principais são cortes de 50% nos recursos aplicados em projetos na África entre 2010 e 2012 e falta de regulamentação. A legislação brasileira não autoriza o País a realizar gastos no exterior para executar os projetos. Por isso, o Brasil depende da aprovação, caso a caso, pelo Congresso Nacional ou da intermediação de organismos multilaterais, que cobram uma taxa que chega a 5%. São eles que fazem compras, pagamentos e contratações em nome do Brasil.
As dificuldades estão refletidas nos projetos brasileiros. É o caso da Universidade Aberta do Brasil (UAB) em Moçambique, um programa de ensino a distância realizado pelo Ministério da Educação. O objetivo é formar professores moçambicanos com o apoio de universidades brasileiras, que ensinam através de plataformas conectadas à internet. Iniciado em 2011, previa a formação de 7.290 estudantes até 2014. Até agora, são apenas 630, menos de 10%.
"Houve um imprevisto legal que impossibilitou a expansão", explica o coordenador do projeto, Oreste Preti. A UAB Moçambique previa o pagamento de bolsas para tutores moçambicanos, o que não era permitido pelas normas brasileiras. O problema foi contornado com uma portaria presidencial no ano passado. A UAB em Moçambique é o projeto de cooperação do Brasil na África que tem o maior orçamento: US$ 32 milhões.
No norte de Moçambique, o campo experimental da Embrapa em Nampula também passa por dificuldades. A instituição está testando variedades agrícolas e técnicas de cultivo como parte de um programa de desenvolvimento da agricultura moçambicana. Em maio, quando o Estado visitou o local, instrumentos técnicos e recursos previstos no projeto ainda não haviam chegado, exigindo criatividade da equipe.
Todo o trabalho era manual, a começar pela colheita. Na sombra de uma árvore, um grupo batia com um pedaço de pau em sacos cheios de soja, para separar os grãos dos galhos. Ao lado, uma lona azul era amparada por algumas estacas para improvisar um pequeno galpão, onde técnicos em agronomia contavam milho, grão a grão, para realizar análises técnicas.
"Montamos os ensaios ali no alpendre, com dificuldade e muito sacrifício. Imagina se cai chuva! Vamos perder tudo! Faltam recursos", reclamou o engenheiro agrônomo Antônio do Rosário Ipo, que trabalha no projeto. "Se tivesse dinheiro no bolso, isso aqui seria um paraíso", disse Henoque Silva, então coordenador técnico do campo experimental e funcionário da Embrapa há 30 anos. Desanimado, ele rompeu o contrato de trabalho (intermediado por um órgão multilateral) e voltou para o Brasil em julho.
Modelos. A colaboração do Brasil para o desenvolvimento de países pobres é tímida se comparada à das nações desenvolvidas e das demais economias emergentes. Entre 2005 e 2010, o País gastou R$ 6,6 bilhões em cooperação internacional no mundo, de acordo com dados do Ipea compilados pelo Estado e corrigidos pela inflação. É um valor equivalente ao que gastaram Grécia e Portugal no mesmo período.
Três quartos dos R$ 6,6 bilhões foram destinados a contribuições obrigatórias para organismos internacionais e missões de paz. Apenas 7% (R$ 450 milhões) foram para projetos de cooperação técnica em todo o mundo. Outros 8% (R$ 530 milhões) foram usados com cooperação humanitária, fornecida em situações emergenciais, como conflito, fome e desastre natural – e que também precisa de aprovação no Congresso.
Na área de cooperação técnica, a maior parte dos projetos brasileiros é de missões de curta duração, realizadas por funcionários públicos para transmitir a experiência brasileira com políticas públicas. "Para todo problema africano tem uma solução brasileira", cita o embaixador Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, responsável por África e Oriente Médio no Itamaraty.
A partir de 2008, o Brasil aumentou o número de iniciativas de grande porte, com maior orçamento e tempo de execução – geralmente realizadas em parceria com Embrapa, Senai e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Além de Moçambique, a Embrapa tem estação de pesquisa no Mali e escritório em Gana. O maior projeto da Fiocruz é uma fábrica de medicamentos contra a Aids em Moçambique. E o Senai tem unidades em funcionamento em Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Existem no mundo diferentes modelos de cooperação internacional. A Norte-Sul, que é a maior em volume de recursos, segue diretrizes criadas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Hoje, seu foco é o apoio financeiro aos orçamentos de Estado. Os países emergentes também se tornaram importantes atores no cenário da ajuda internacional na última década. Entre eles, a China, que lançou suas próprias regras em 2011. A principal forma de ajuda chinesa à África é a construção de infraestruturas.
Já o Brasil continua sem regulamento ou estrutura legal para realizar sua cooperação, mas segue três princípios em sintonia com a tradição do Itamaraty. Só realiza projetos após manifestação de interesse de um país, não interfere em assuntos internos e não exige nenhuma contrapartida.
Intermediário. O principal intermediário do Brasil para executar a cooperação técnica é o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). "O PNUD tem parcerias com as agências de cooperação de vários países emergentes. No Brasil, o que se destaca é que a maioria da cooperação brasileira é canalizada através do PNUD. Nos outros, é apenas uma porção", diz o representante residente do órgão no Brasil, embaixador Jorge Chediek.
O órgão pretende que a parceria seja temporária – o acordo atual expira em 2014 – e afirma que o Brasil precisa criar "uma arquitetura institucional dentro do governo brasileiro". Isso significa a aprovação de um novo marco legal que autorize o Brasil a executar diretamente sua cooperação, como acontece nos outros países. Com a taxa de 5% cobrada do Brasil, o PNUD custeia toda a operação do seu escritório no País.
A Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada ao Itamaraty, é o órgão responsável pela cooperação técnica. Ela foi criada para gerir a ajuda que o Brasil recebia. Na última década, contudo, o Brasil inverteu os papéis. Hoje, fornece mais ajuda do que recebe, mas o regulamento da ABC não mudou.
Durante viagem à Etiópia, em maio, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o Brasil criaria uma nova ABC para superar os gargalos da atual. "Essa agência tem por objetivo criar um mecanismo através do qual as iniciativas que o Brasil toma não tenham de passar por outros órgãos multilaterais. Você pode até fazer em parceria com a ONU, mas geralmente as ações nossas na África são executadas por uma dessas agências internacionais e não por nós diretamente, apesar de ser com recursos nossos", afirmou a presidente.
A reforma da agência é um dos pilares da "agenda África" que o governo Dilma começou a implementar este ano, mas o Itamaraty não tem previsão sobre a data das mudanças. Também foi sugerido para a presidente o fortalecimento do orçamento da ABC. Depois de crescer cerca de 40 vezes nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, os gastos da agência com a África caíram de US$ 20,2 milhões para US$ 9,7 milhões, entre 2010 e 2012.
Com os cortes, a prioridade tem sido finalizar compromissos assumidos durante os anos Lula, sem se comprometer com novas iniciativas. "No início do ano, fazemos um planejamento de acordo com o orçamento disponível. Não podemos incluir todas as atividades e projetos, porque não temos recursos para tudo", diz o diretor da ABC, embaixador Fernando Abreu. "Não é por falta de capacidade. Nós executamos 100% do orçamento. Cada centavo que entrar aqui, vamos executar", justifica.
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