Psicólogo de desastres descreve o que vê no Rio Grande do Sul: ‘Sofrimento humano real e concreto’

Professor da FURG aponta impactos nos voluntários, percebendo até mesmo em si; com a continuidade da tragédia por semanas, fala na necessidade de treinamentos e apoio nos abrigos

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

O voluntariado costuma ser uma atividade que traz uma sensação de realização em grande parte dos envolvidos. Mas é diferente em catástrofes, como o maior desastre ambiental do Rio Grande do Sul, que impactou mais de 2 milhões de pessoas em grande parte do Estado. O Estadão falou sobre a angústia, o esgotamento e a adrenalina vividos pelos voluntários gaúchos.

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“Toda aquela coisa ‘bonita’, aquele senso de propósito, vem acompanhado de um contexto de ambivalência, porque vai expor essa pessoa a um nível de estresse agudo muito grande. Nós estamos lidando com o sofrimento humano real e concreto”, descreve Lucas Neiva Silva, de 50 anos, professor de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Com experiência em desastres e tragédias, como a da Boate Kiss, o psicólogo aponta que os voluntários acabam vivendo episódios de estresse agudo. Por isso, são necessários esforços das autoridades e de organizações para treinamentos e orientações, especialmente com a perspectiva de que as pessoas precisarão dos abrigos por semanas, até meses.

“Se for parar para pensar no sofrimento de cada pessoa, na história de cada pessoa, na dor de cada pessoa, é muita dor concentrada por metro quadrado”, resume.

Professor da FURG, Lucas Neiva Silva é especializado neste tipo de situação Foto: Arquivo pessoal
  • Neiva Silva explica que os sintomas de estresse agudo são cognitivos, emocionais e até fisiológicos, o que gera uma sobrecarga e sensação de esgotamento.
  • Dentre os sinais, estão desorientação, percepção indevida sobre o tempo e até perda de memória.

“A gente ouve das pessoas: ‘Tem três dias que estou trabalhando aqui e parece que foram 30′. Pela quantidade de coisas que aconteceram, pela quantidade de emoções vivenciadas”, exemplifica. “O somatório desses sintomas vai gerando um nível de esgotamento e de sofrimento psicológico.”

Com atuação nas áreas de resgate e nos abrigos, o professor percebe até mesmo em si alguns desses sinais. “Tu vê: estava aqui tentando buscar a palavra e a memória não estava ajudando. Vejo em mim, neste momento, um pouco do que a gente está falando”, relata.

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O psicólogo conta que o impacto mais comum é na qualidade do sono, tanto na dificuldade para dormir quanto na perda de sono no meio da madrugada. E cita um agravante: “Não acontece em uma noite, acontece todos os dias e todas as noites”.

Voluntária em abrigo improvisado localizado no estacionamento de um shopping de Porto Alegre Foto: Nelson Almeida/AFP

Ele explica que os voluntários precisam desse treinamento, assim como da necessidade de descanso e de uma organização de escalas. “Essa galera vai precisar dar uma pausa, só que não vai querer parar. Gera certa culpa estar no bem-estar da casa”, aponta.

Isso também envolve maior suporte na gestão. Quanto mais o tempo passa, mais inquietos ficarão os desabrigados. A demora para a água baixar também gera uma angústia, ainda mais o repique das cheias no Estado.

“A gente vai absorvendo tudo isso junto, porque não existe a possibilidade de isso não dar certo. Não existe a possibilidade de não dar certo. Tem que dar certo. A gente tem que fazer dar certo”, desabafa.

“Até me emociono falando contigo, porque não existe opção B, de não dar certo. É um nível de comprometimento com esse senso de realização e responsabilidade com essas pessoas que tem que dar certo e vai dar certo. Nem que a gente tenha que ir até a Lua.”

À esquerda, professor na cozinha do abrigo; à direita, em reunião com surfistas que fizeram resgate de pessoas em Porto Alegre Foto: Arquivo pessoal

Diferenças entre voluntariado nos abrigos e nos resgates

O professor percebe que há diferenças nos impactos e nas experiências dos voluntários entre aqueles que atuam nas áreas de resgate e os dos abrigos. Isso envolve tanto situações a que se é exposto quanto o próprio momento em que os afetados estão.

Nos resgates, a adrenalina é maior. Há senso de urgência. Ao mesmo tempo, convive-se com pessoas no momento de pico de sofrimento, assim como se testemunha situações muito trágicas. E cada resgatado reage de um jeito: alguns choram, outros falam muito, outros querem ficar quietos.

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“Gera um impacto maior, por ter uma conexão direta com a outra pessoa”, explica Neiva Silva. Por outro lado, o voluntário vive uma sensação de alívio e de realização por ter conseguido resgatar aquela pessoa ou animal doméstico. Tem um feedback, que retroalimenta a continuidade do trabalho.

Abrigo montado em Porto Alegre Foto: Nelson Almeida/AFP

No abrigo, é um outro momento. O pico de estresse passou. “A frase que mais ouvi foi: ‘Eu perdi tudo”’, conta o professor. “A angústia do voluntário do abrigo normalmente é diferente, porque tem que gerenciar uma coisa que não é daquele momento, é de todos os dias”, compara. “Não é mais um estresse agudo, é crônico.”

Esses locais têm reunido desde algumas centenas até milhares de pessoas. Portanto, há alta demanda para a preparação de refeições e separação de doações e organização, por exemplo, assim como é necessária uma logística e gestão para evitar conflitos e problemas e, ainda, dar assistência em geral.

“A alimentação é um desafio grande. Precisa fazer almoço, café, janta, para 400, 500 pessoas. Nada pode dar errado, nada pode faltar”, exemplifica. “Na distribuição de roupas, tem que dar conta do que está faltando, garantir a reposição do estoque. Quantos bebês eu tenho? Qual é o tamanho da fralda? Precisa de um senso de logística.”

Com o retorno da chuva e a chegada do frio nos últimos dias, também aparecem novas preocupações, por exemplo. Não só com o aumento do nível da enchente, mas pelos impactos diretos nos abrigos, como goteiras, umidade e frio.

Segundo o pesquisador, uma parte dos voluntários e das vítimas pode desenvolver Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TSPT). Entre os sintomas, estão a revivência, com pensamentos que retomam a situação vivida. “Acordar a noite e pensar: ‘Será que fiz certo?’”, diz. Outro ponto é a evitação, pois a lembrança daquela situação traz um estresse agudo.

Ele diz, contudo, que a maioria dos voluntários consegue “metabolizar” o que viveu adequadamente após o período de maior exposição. Durante a experiência, contudo, as situações de estresse são quase inevitáveis.

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“Vire e mexe, a gente vê um voluntário que sai do setor, se afasta, vai num canto e chora, porque, naquele momento, no foco da tarefa, não se permite parar para chorar. Mas isso não significa que não está sofrendo”, exemplifica.

Voluntários durante resgates em Canoas, na região metropolitana Foto: Amanda Perobelli/Reuters

“Às vezes, dá uma choradinha de leve, abraça no companheiro. Aí, ok, está beleza, toma uma água, um café, e segue o baile”, conta. “Mas, quando chega em casa, muitos relatam: ‘bah, hoje eu precisei chorar’.”

Outro momento difícil é quando não se consegue o necessário. Quando se luta, luta, luta e não consegue. Por isso, ele destaca a importância da preparação para os voluntários. “Não basta só amor. Precisa ter o mínimo de formação e preparação para estar nesses lugares.”

A maior catástrofe ambiental do Rio Grande do Sul impactou mais de 2,1 milhões de pessoas em 446 municípios. Segundo a Defesa Civil, ao menos 76,8 mil pessoas estão em abrigos e 538,5 mil estão desalojadas (em casas de amigos, familiares e conhecidos).

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