O Estado brasileiro tem o dever e a obrigação de garantir que a população negra tenha assegurado o seu acesso à cidadania plena e à condição de cidadãos livres e dignos, enfrentando rigorosamente a necropolítica, que tem permitido a violação dos nossos direitos inalienáveis e transformado pessoas em seres descartáveis.
Por esta razão, a primeira grande luta das mulheres negras é pela vida. Representamos quase 28% da população de um país de maioria negra, mas lideramos os piores índices socioeconômicos e as trágicas estatísticas da violência; sejam assassinatos, violência doméstica, violência do desemprego, da fome e da ausência de reconhecimento.
Trabalhar é condição de sobrevivência, pois precisamos alimentar, educar e cuidar dos nossos filhos e muito frequentemente ajudamos nos cuidados dos sobrinhos, netos, irmãos, pais, avós. Somos historicamente as provedoras e cuidadoras de nossas famílias.
Quando me convidam para falar sobre Diversidade Racial e Inclusão, muito frequentemente me informam que o processo já está em andamento. E, então, costumo fazer duas perguntas: Quantas mulheres negras trabalham nesta organização? Quais são os cargos que ocupam? E as respostas costumam ser bastante semelhantes: “Não temos um número preciso” ou “menos que o ideal, mas pretendemos ampliar”.
Quanto à segunda parte da pergunta, mais uma vez, respostas bem parecidas: “Não temos esse levantamento”. A inexistência de qualquer dado ou pesquisa já é uma resposta, pois revela pouco compromisso com esta temática ou uma tentativa de não enfrentar uma realidade que qualquer observadora, um pouco mais atenta pode constatar.
A psicóloga Cida Bento, no seu livro O pacto da Branquitude (Companhia das Letras) nos explica com muita competência que, apesar do discurso a favor da diversidade e da inclusão, os processos seletivos são atravessados pelo racismo não verbalizado que garante que os melhores cargos, aqueles com maior visibilidade, prestígio social e remuneração permaneçam monopolizados por candidatos não negros.
De fato, quando as mulheres negras são recrutadas majoritariamente para cuidar da limpeza e da cozinha e os homens negros para a área de segurança, isso significa que o processo de seleção precisa ser avaliado, os critérios analisados e os selecionadores devidamente preparados para não reproduzir os estereótipos e os preconceitos do senso comum.
Foram todas essas experiências e questões que me instigaram a realizar a pesquisa de pós-doutorado O impacto do racismo para o desenvolvimento profissional das mulheres negras nas organizações de São Paulo. Considero fundamental destacar que, para a realização deste estudo, pude contar com a colaboração e parceria de muitos colegas como a Profa. Dra. Silvia Casa Nova, supervisora do meu pós-doutorado; Ana Carolina Rodrigues, Janaína Dourado e toda a equipe do Generas, o Núcleo FEA de Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade.
Foram igualmente importantes os diálogos com a profa. Dra. Sandra Maria Cerqueira da Silva, também do Generas e da Universidade Federal da Bahia, os professores Daniel Carvalho de Paula e a profa. Dra. Reimy Solange Chagas, ambos colegas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde leciono e oriento pesquisas sobre Diversidade Racial nas organizações; Larissa de Fátima Ribeiro Calixto, co-fundadora da Associação de Negros Feanos (ANFEA-USP), gerente de Finanças e Diversidade no Ensina Brasil e atual presidente do Comitê de Diversidade da Sempre FEA e a toda a equipe de Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Atualmente tenho observado que algumas emissoras de TV começam a incluir jornalistas negras e negros para reportagens locais, e esta visibilidade é muito importante. Mas não vejo essas profissionais atuando como enviadas especiais ou correspondentes internacionais. O reconhecido destaque nas mais diversas modalidades esportivas, não é suficiente para garantir a presença das mulheres negras como comentaristas ou âncoras de programas esportivos. Não consegui encontrá-las em emissoras especializadas em vendas de produtos e serviços. Também não estamos em programas relacionados a viagem, turismo ou hospedagem.
Todos esses “não lugares” exemplificam o que chamamos de “violência simbólica”, com grande impacto no imaginário coletivo brasileiro, reforçando os estereótipos que atentam contra a nossa dignidade, integridade, bloqueiam o nosso reconhecimento e desenvolvimento profissional e impedem o nosso acesso à cidadania plena e efetiva.
É preciso observar e denunciar todos os espaços que excluem e invisibilizam a população negra, principalmente as mulheres negras e exigir que sejam implementadas políticas ou iniciativas que garantam o cumprimento da Constituição Federal, que no seu Art. 3º, parágrafo IV refere-se aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Fazer discursos a favor da diversidade racial e investir em campanhas de marketing não é suficiente. É preciso demonstrar objetivamente o compromisso com a igualdade de oportunidades e com a representatividade, apresentando as respostas para as seguintes questões: Quantas pessoas negras estão incluídas no nosso cotidiano? E na empresa ou na organização onde trabalhamos? Quais são os cargos que ocupam?
* Antonia Quintão é presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-doutora pela Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP), coordenadora de Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu e docente no Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie
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