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‘Quem deve liderar a iniciativa de desenhar a segurança pública do Brasil é o governo federal’

Para a professora da FGV Joana Monteiro, a base da luta contra o crime organizado é o investimento em capacidade investigativa, e não a compra de mais armas e viaturas

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Foto do author Caio Possati
Foto: PEDRO KIRILOS
Entrevista comJoana MonteiroEconomista e professora da FGV/Ebape

A sofisticação alcançada pelas facções criminosas - como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que aumenta seu poder econômico e articulação internacional - desafia as autoridades. Buscar soluções para essa crise passa por ampliar a capacidade de investigação (principalmente de homicídios) e trazer o governo federal para a liderança do combate à violência.

Para a economista e pesquisadora da área de segurança pública Joana Monteiro, estruturar um sistema de informação de inteligência, e tomar decisões a partir de dados, pode tornar o trabalho da polícia na rua mais assertivo do que concentrar os investimentos em viaturas e armamentos.

Para a economista e professora da FGV Joana Monteiro, o crime organizado deve ser combatido com mais investimentos em investigação. Foto: Alex Silva/Estadão

“No Brasil, se construiu uma narrativa eficaz de que isso é um problema dos Estados, porque vemos a segurança pública como sinônimo de polícia”, diz ela, professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Isso só vai mudar quando o governo federal, em termos de política, puxar para si a liderança do tema. E só vai acontecer se houver pressão pública”, acrescenta. Pesquisa do Instituto Atlas Intel divulgada esta semana mostra que a segurança pública é a área em que a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem a pior avaliação entre os eleitores.

Joana também criticou o Senado pela aprovação do projeto que determina o fim das saídas temporárias, medida que chama de “populismo penal”; e cobra maior capacidade das autoridades em registrar melhor os dados de reincidência nas prisões.

O que falta, do ponto de vista político e de gestão, para que a segurança pública tenha prioridade?

Acima de tudo, tem de ter pressão popular. Acredito que esteja começando a mudar. Do meio do ano passado para cá, as pesquisas de opinião começaram a mostrar a segurança pública como o principal problema brasileiro. Antes isso não acontecia. Sempre apareciam economia, saúde, corrupção.

No Brasil, se construiu uma narrativa eficaz de que isso é um problema dos Estados, porque vemos muito a segurança pública como sinônimo de polícia. Como são os Estados que detêm as principais forças policiais, fica-se esperando o governador fazer algo.

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Isso só vai mudar quando o governo federal, em termos de política, puxar para si a liderança do tema. E só vai acontecer se houver pressão pública. Tanto para os governos federais como municipais, (trabalhar com a segurança) ainda é uma escolha do político. Os políticos veem isso como um tema difícil, que traz mais problemas do que vantagens.

Se eles tiverem a opção de não se envolver, ou ter a narrativa de “só vou ajudar se precisar”, vão ficar nessa situação. O que tem de mudar é uma pressão pública para dizer que isso não é só um problema dos Estados. Quem deve liderar, certamente, a iniciativa de desenhar a segurança pública do Brasil é o governo federal.

Qual deve ser o papel da União na área? Quais devem ser as prioridades do Ministério da Justiça e Segurança Pública?

A prioridade é aquele desenho de governança de quem é responsável pelo quê e quais são as suas responsabilidades, e como as instituições serão cobradas por isso. Outra coisa absolutamente fundamental é estruturar um sistema de informação de inteligência, unificar a base de dados, criar um sistema de indicadores nacionais, obrigar as instituições públicas a compartilhar dados.

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Outra parte importante é de regramento, o que cabe a cada instituição fazer ou não. A vantagem de uma agenda liderada pelo governo federal é de que ele está mais isolado das influências políticas, dos problemas do dia a dia. As pautas mais difíceis são mais fáceis de avançar do ponto de vista federal.

Ainda tem uma lógica de investir em segurança pública com a compra de colete, viaturas, armas e munição. Quando se fala em investir na segurança pública, geralmente se fala em investir em unidades especializadas da Polícia Militar, que é quem acaba respondendo quase tudo da segurança. Mas quase nunca falamos em investimento em investigação.

Joana Monteiro, pesquisadora da área de segurança pública, entende que o poder público precisa acompanhar o nível de sofisticação do crime organizado. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

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Como melhorar a capacidade investigativa?

Essa discussão é muito difícil. O homicídio é o principal indicador de segurança pública porque é a vida das pessoas. Mas, o evento do homicídio funciona assim: quando cai, todos os políticos gostam de dizer que a política pública que eles fizeram reduziu os homicídios. Quando aumenta, fala-se que é multicausal.

Os números indicam que o Brasil apresentou, em 2023, queda de 4,17% no índice de crimes violentos letais (homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e feminicídio), na comparação com 2022 (40.429 mortes ante 42.190), e tem sofrido um sobe e desce desde 2011. Quais os motivos por trás dessa oscilação?

Há poucas evidências robustas que digam “por causa disso, daquilo”. Há muitas hipóteses sobre o porquê que reduziu. Houve uma disparada grande dos homicídios nos anos de 2010, que foi consequência do Norte e Nordeste, puxando essa taxa. A partir de 2017, 2018, há uma acomodação. E isso se repete em todos os Estados, mas é forte no Norte e no Nordeste.

Há quem diga que houve acomodação de disputa entre os grupos (criminosos). Mas, entendemos pouco ainda sobre quais ações públicas podem ter contribuído, ou não, para isso.

O grande desafio para estudar isso é que a gente vê o número total de homicídios, mas não há muitas informações sobre o contexto em que eles aconteceram. Fica difícil entender a dinâmica. E isso acaba repetindo uma lógica de que é uma área que não está disposta a estudar os seus fenômenos, investigar as raízes do problema e pensar em soluções que sejam mais estruturais. Estamos sempre reagindo aos momentos de crise com soluço.

Reportagens do ‘Estadão’ mostram que facções têm diversificado suas estratégias de lavagem de dinheiro, capturando contratos com o poder público, usando igrejas de fachada e até fintechs. Como combater isso?

Dentro da segurança pública, há segurança ordinária de rua e a criminalidade organizada. O caso do PCC é o de uma organização criminosa complexa, que ganhou poder econômico explorando um mercado absolutamente lucrativo. A grande questão é como se controlam os benefícios desse crime, e como se reduz.

Todo mundo fala: “Segue o dinheiro”. Mas, na prática, é difícil. Cada vez mais falamos de transações internacionais, eletrônicas, sistemas, fintechs. É uma lista de ações e regulações que precisam ser feitas.

Falávamos da necessidade de se investir em investigação financeira que, cada vez mais, os desvios são mais sofisticados. A lógica é assim: o crime organizado se sofistica, o poder público precisa se sofisticar também. Só que seguimos uma lógica de investir em uso militar.

O que São Paulo está fazendo? Usando a força militar para lidar com o PCC. Isso não é apenas pouco eficiente; é um processo que vai destruindo a polícia. Está descontrolando o uso da força.

A base contra o crime organizado é investigação, e não uso militar. Uso militar será necessário em algumas condições de casos extremos, de tiroteio, conquistas de território. Mas a base disso é investigação.

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E é nessa parte que fica clara a ausência do governo federal. Por que estamos falando de “quem é que deveria liderar uma estrutura de investigação financeira? Dentro do Ministério Público, do Banco Central, Ministério da Fazenda? Quem cuida disso?

É claro que o Ministério da Justiça deve estar na liderança, mas há casos de desvios financeiros. É algo que o setor financeiro deveria ter interesse, talvez tenha mais expertise até de detectar coisas e trazer colaboração.

Quando falamos de governança, é sobre isso: o que precisa ser feito, quem precisa fazer e quem vai definir quem é o responsável por isso.

A polícia de São Paulo é alvo de questionamentos por causa das operações Escudo e Verão, que deixaram 67 mortos no litoral. Na Bahia, a alta letalidade policial também é criticada. Qual a sua avaliação sobre a forma como as operações têm sido conduzidas?

A Polícia Militar deve, sobretudo, prevenir o crime e o uso da força deve ser usado em casos excepcionais. Não é para ser uma banalização e instrumento central da política pública. Às vezes, é necessário, mas, quando começamos a ver números incrivelmente altos na Bahia, Rio de Janeiro, Goiás e São Paulo, tem algo errado. Não se pode naturalizar isso.

Na verdade, tem uma política que chamamos de “baixo controle”, onde suas lideranças políticas falam que não tem importância que você mate e (que isso) faz parte do processo. Dá muita discricionariedade ao policial da ponta. O poder de negociação da vida da pessoa é quase o poder máximo que ela pode ter. É a porta do inferno, entendeu? É expor a polícia a uma série de problemas.

São Paulo está usando a força militar para lidar com o PCC. Isso não é apenas pouco eficiente. Isso é um processo que vai destruindo a polícia. Você está descontrolando o uso da força.

Joana Monteiro, economista e professora da FGV

O problema que eu vejo hoje é político, acima de tudo. O que os políticos falam é o que as pesquisas de opinião dizem que a população gosta. Não sei o que eles querem dizer com isso, nunca vi essas pesquisas, mas eu acho que está relacionado ao fato de que, como as pessoas estão muito cansadas com a insegurança, a militarização e o uso das polícias são uma forma de você ver que alguma coisa está sendo feita. Então, para um governador, um político, isso é muito instrumental; ele sinaliza: “Eu estou fazendo algo para segurança pública”.

O grande desafio quando eu falo que a gente precisa se basear na investigação é que a investigação é silenciosa, e os resultados são mais lentos. Então, é muito difícil para um governador falar.

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Eu acho que isso é a porta de entrada do sucateamento da polícia. A base da polícia moderna, no mundo inteiro, é criar e estruturar sistema de informação, fazer investigação cruzando dados identificando redes criminais, grupos, tendo um processo robusto de investigação, e não tem isso no Brasil.

Embora a Polícia Militar seja muito criticada, é ela quem está segurando as pontas da segurança pública do Brasil, porque ela é a polícia de pronto emprego, que vai resolver todos os casos de emergência. A gente tem pouca pressão por resultados da parte investigativa no Brasil, principalmente nas polícias civis, que precisam de investimento, mas também cobrar delas.

Existe resistência de uma parte dos políticos e das próprias corporações sobre o uso de câmeras corporais. Qual a sua posição sobre o uso desse dispositivo?

Não acho que ela é a prioridade número um. Eu acho que a gente tem, das polícias, outros mecanismos de controle que precedem o uso das câmeras. Por exemplo, saber onde a polícia está o tempo inteiro, e ser capaz de consultar essa informação de forma fácil sobre o passado, para mim é crucial.

Eu não posso ter um evento policial que deu problema e eu não tenho nenhum registro dizendo o motivo de a polícia estar ali. Isso tem de estar, no meu ponto de vista, 100% registrado.

Acredito que compartilhamento básico de microdados para as duas polícias e para o Ministério Público são todos esforços que precedem e são muito mais baratos do que a câmera corporal. Para polícias que têm níveis muito altos de uso da força, eu acho que ela precisa ser usada.

Colocar a câmera sem o comandante de polícia, o secretário da Segurança Pública e o governador estarem comprometidos com a redução do uso da força é jogar dinheiro no lixo. Porque não vai mexer. Ele vai dar câmera e vai falar que “não precisa (investigar)”.

Combater o PCC apenas com os militares pode levar ao sucateamento da PM, diz a docente. Foto: Werther Santana/Estadão

Então, a câmera é um aparelho, uma tecnologia, que para São Paulo se mostrou fundamental. A gente faz uma análise muito robusta comparando as três ondas que tiveram de implementação, quem estava usando, quem não estava, a partir do momento que usou, e a câmera fez uma diferença muito forte.

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A Bahia agora está estudando a implementação. Acredito que lá precisa. É um problema muito alto lá, e às vezes você precisa dos vídeos também para quebrar certos discursos também.

Quais são os bons exemplos de políticas de segurança pública no Brasil?

Meu principal ponto de pesquisa é fazer avaliação de impacto de política pública. Isso é algo muito pouco feito no Brasil ainda. Hoje, em termos de policiamento ostensivo, a coisa mais defendida no Brasil, no mundo, na verdade, é “patrulhamento em ponto quente”. É a ideia de que você tem que usar dado criminal georreferenciado para identificar micro segmentos de rua que concentram a parcela desproporcional do crime, e estes locais devem ser a prioridade no policiamento preventivo, nas intervenções urbanísticas etc.

A gente fez o experimento do patrulhamento em ponto quente em Curitiba; tivemos evidências que isso reduziu o crime de rua, não afetou os entornos, e não temos muitas evidências de deslocamento do crime para outros lugares.

Como as pessoas estão muito cansadas com a insegurança, a militarização e o uso das polícias são uma forma de você ver que alguma coisa está sendo feita. Então, para um governador, um político, isso é muito instrumental; ele sinaliza: ‘Eu estou fazendo algo para segurança pública’

Joana Monteiro, economista e professora da FGV

Eu acredito muito no sistema de gestão por resultado. A gente tem um modelo que eu considero muito exitoso, que é o programa RS Seguro, do Rio Grande do Sul. A gente ainda está em fase de conduzir a avaliação de impacto, mas o desenho, os detalhes que eu vi, me parecem muito afinados.

São reuniões de gestão que o governador lidera, com órgãos de justiça e segurança pública e com as secretarias executivas envolvidas em prevenção, que tem municípios prioritários, com altos crimes. Uma vez por mês tem uma reunião com base nos números para discutir casos concretos, problemas concretos e como aprimorar, reduzir o problema, melhorar a investigação.

O que a gente tem são programas específicos no Brasil, e a gente tem indicações que deram certo. Mas, o que a gente ainda precisa muito é investir em avaliação de impacto para entender o que está fazendo a diferença. A gente faz um monte de coisas ao mesmo tempo. Provavelmente algumas coisas dão certo e outras não. Então, a gente não sabe diferenciar o joio do trigo.

Como a sociedade civil e o setor produtivo podem contribuir nessas estratégias de combate à violência?

A gente tem muito pouca lógica sistêmica, e a gente está falando de problemas muito difíceis. Acho que precisam de muitas expertises e muitas cabeças para resolver. A gente tem um desafio técnico, mas também tem um desafio político muito forte. Tem muita gente ganhando dinheiro com o status quo. Então, acho que a sociedade civil e o setor privado são fundamentais para pressionar.

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Se você quer discutir como diminuir ação criminosa e desvio dentro da indústria, você tem que chamar quem é da indústria porque ela é quem entende daquele negócio. Então, no entendimento do problema, eles têm como contribuir muito, e no desenho de soluções também são outras cabeças, outros ângulos e olhares.

Recentemente, o Senado aprovou o projeto que determina o fim das saídas temporárias de presos. Na sua visão, quais efeitos na segurança esse tipo de ação pode provocar?

Esse tipo de discussão no Brasil é um claro exemplo de como a gente faz sem estar informado em dados. Para justificar um projeto como esse, eu gostaria de ver os dados que dizem que esses presos, da saidinha do Natal, estão voltando muito menos do que os outros. No meu entendimento são presos do semiaberto, que já saem todo dia.

Outra medida em que o Brasil precisa melhorar, segundo Joana, é a capacidade de registrar a reincidência de presos no sistema carcerário. Foto: Senappen/Divulgação

É diferente quando a gente fala de crime organizado, sofisticado, como são os processos de lavagem de dinheiro do PCC. São informações que a gente não tem. Não são informações fáceis.

Agora, no caso da saidinha, é uma informação fácil. Os bancos de dados do Judiciário dizem isso, quem voltou para a cadeia, quem não voltou etc. Você tem que fazer um bom relatório com boas comparações válidas. Isso é o que chamam de populismo penal. É muito fácil para os congressistas votar e aprovar a lei, que é um esforço pontual e você diz que está preocupado com o tema. O difícil é estruturar uma boa política, estruturar um bom sistema judiciário.

Segundo o CNJ, o Brasil tem uma população carcerária de 683 mil detentos e muitos deles associados a essas facções. Segundo levantamento do Instituto Igarapé, 1 a cada 3 presos retorna para a prisão depois de cumprir a pena. O que esses números revelam do ponto de vista de políticas de segurança pública?

A questão carcerária é a não questão. A ideia é que você coloca o preso no presídio e acabou, não precisa se preocupar mais com ele. É uma coisa muito defendida entre todos os pesquisadores, promotores, que o sistema prisional é a base da estrutura das organizações criminosas. Seja porque elas se fortalecem e criam afiliadas e oferecem proteção para os presos dentro do sistema, seja porque de lá eles seguem dando ordem para todo mundo.

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