"Renomeamos essa geração. É a geração sem sem sem", diz Rafael (nome fictício), universitário de 24 anos e morador da periferia de Fortaleza, que pede para não ser identificado. "Sem Estado, sem escola adequada, sem opções culturais. Sem nada."
Diferentemente dos jovens "nem-nem", a chamada geração "nem-nem-nem" inclui uma nova categoria: além de não estudar e não trabalhar, o jovem "nem-nem-nem" também não está procurando emprego formal. Dos jovens nem-nem-nem, dois terços são mulheres. A cada 10 meninas da geração "nem-nem-nem" que abandonam a escola, três saem por gravidez precoce.
O diagnóstico é da pesquisa "Eles dizem não ao não", realizada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e lançada nesta terça-feira, 30. O levantamento inédito analisa o perfil e as motivações do jovem da periferia que nem trabalha, nem estuda, nem está procurando emprego.
Os "nem-nem-nem" são formados, predominantemente, por mulheres negras com filhos, que ainda moram na casa dos pais onde a mãe é a "chefe da família", cujas famílias são cadastradas no Bolsa Família ou detentoras de renda inferior a um salário mínimo, e ex-alunas de escola pública, tendo abandonado os estudos ainda no ensino fundamental por gravidez, casamento ou falta de interesse.
Iniciada em outubro de 2018, a pesquisa entrevistou 150 jovens da região do Grande Bom Jardim, na periferia de Fortaleza, no Ceará. A área possui cinco bairros que estão entre os 12 mais vulneráveis de Fortaleza. A macrorregião tem atuação de facções criminosas nacionais e regionais, que delimitam os territórios impedindo a passagem dos moradores.
Segundo o IBGE, o Ceará é o 6º Estado com a maior proporção de jovens "nem-nem". Alagoas lidera. A transição do jovem cearense para esta condição ocorre, de acordo com o levantamento, ainda na idade escolar.
Dos 150 jovens que participaram dessa pesquisa, 54,4% se identificam como jovens que “nem trabalham e nem estudam” ou “jovens nem, nem” e 45,6% como os que “nem trabalham, nem estudam e nem estão procurando” definidos como “jovens nem, nem, nem”. Quanto ao recorte de gênero, 66,6% são mulheres e 33,3% homens.
Pouco mais da metade, 51,3%, afirmou que sua renda mensal é de umsalário mínimo e que 61% têm famílias cadastrados no Bolsa Família. Quase 47% dos jovens identificados como “nem-nem-nem” têm como nível de escolaridade apenas o fundamental incompleto, “o que evidencia o impacto dessa baixa escolaridade nos destinos e oportunidades de ocupação que permeiam esse segmento”, conclui o estudo.
Facções
Segundo Rafael, desde o começo de 2016, as facções começaram a guerrear no Grande Bom Jardim, o que afetou a vida dos moradores. A atuação dos grupos organizados rivais dentro do Grande Bom Jardim impede a passagem de residentes entre os bairros, impactando a circulação de jovens para serviços básicos como escola e posto de saúde.
"De repente, as pessoas não podem ter mais a sua vida normal, nem andar, nem ficar na rua. Em algumas escolas, as diretores nos disseram que 50% dos meninos não estavam mais indo para a escola porque não podiam atravessar mais a rua, que passou a ser dominada por uma facção diferente daquela que comanda a rua onde os estudantes moram", relata o jovem.
"Chegamos a pedir que os ônibus escolares do governo fizessem uma volta maior para poder buscar esses meninos em casa e levar para a porta da escola", conta. Para Rafael, a interferência das facções, além da ausência do Estado com equipamentos culturais, dificulta ainda mais o interesse dos jovens de voltar à escola e procurar um trabalho.
A área do Grande Bom Jardim tem 146 mil pessoas na faixa etária de 15 a 29 anos. Desse recorte juvenil, 14,4% estão na categoria "nem-nem-nem" e outros 22,25%, na faixa "nem-nem".
Segundo o Censo 2010, do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), a região tem ainda quatro de seus bairros no ranking dos 10 bairros com o maior número e proporção de pessoas em extrema pobreza.
Uma das novidades apontadas na pesquisa é que na verdade a geração "nem-nem-nem" trabalha, porém não em empregos formais.A socióloga e pesquisadora Glória Diógenes, do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus), da UFC, destaca que esses jovens se viram com "bicos", embora não reconheçam essas atividades como trabalho.
"Percebemos que eles por vezes acham que não trabalham. Não estudam e não trabalham, mas na verdade, quando questionados como se sustentam, responderam com expressões como fazer corres, trampar, se desdobrar, dar os pulos. O que se destaca nessa juventude é uma reinvenção, uma força que se desdobra em atividades das mais inusitadas possíveis, desde vender loteria, até cuidar de idosos, vender maquiagens e marmitex em casa", explica Glória.
Segundo ela, essas atividades de sobrevivência se configuram um tipo novo de trabalho que não é reconhecido nem pelos jovens, nem pela sociedade ou pelo mercado de trabalho formal.
"São jovens que não se enquadram na formação regular de trabalho, com horas determinadas e carteira assinada", diz. "Há uma resiliência nesse jovem. Só que não há apoio para esses pequenos projetos múltiplos. Porque a sociedade não reconhece essas pessoas como trabalhadores, mas como vagabundos".
Para Glória, a visão de trabalho formal não condiz com os "fazeres juvenis", principalmente do segmento nem-nem-nem. "A gente como sociedade acaba não percebendo o que eles estão fazendo porque usamos critérios normativos do que deve ser, e não do que é. E assim acabamos criando uma zona de inferência e cegueira. O sombreamento da realidade faz com que os abismos se aprofundem."
Já em relação à escola, também há uma rejeição por parte desses jovens, que não se sentem interessados pela educação formal. Entre os motivos alegados para o afastamento escolar estão o desinteresse (26,6%) e o trabalho (17,3%). A gravidez (32,4%) aparece em destaque no grupo dos jovens “nem, nem, nem”, que, como foi apontado anteriormente, é um grupo composto em sua maioria por mulheres.
Apesar de não trabalharem e nem estudarem, 89% dos entrevistados pretendem trabalhar e outros 78% manifestaram desejo de voltar a estudar.
"Eles dizem não ao que é colocado para eles nas escolas. A menina em geral deixa a escola por gravidez, os meninos, por desinteresse. Porque a escola não acompanha esse tipo de discussão, não compreende esses ritos dos jovens. O que é oferecido a eles não condiz com as expectativas de vida, as experimentações, as locações e as habilidades deles", afirma a socióloga.
‘Dramático’
O relatório foi encomendado pelo Instituto Dragão do Mar, equipamento cultural do governo do Ceará que realiza atividades de formação profissional nas áreas de artes e gastronomia. Um dos programas é a Escola Criativa, compostas por centros de formação hoje com 20 mil matrículas.
Presidente do IDM, Paulo Linhares diz que a situação da juventude "nem-nem-nem" no Ceará é "dramática". Ele defende que é preciso criar possibilidades para essa juventude.
"Esse é um exército de reserva para as facções. Enquanto o Estado não oferecer caminhos para essa juventude, ela vai continuar se transformando em exército de reserva para as facções. Precisamos de projetos para essa juventude que está na condição de geração nem-nem-nem", afirma.
Para alcançar esses jovens "nem-nem-nem", está em processo de criação no IDM o projeto Superação, vinculado à Escola Criativa. A ideia é fornecer uma bolsa para os estudantes (vale transporte, alimentação e ajuda de custo), em torno de R$ 100 por mês, para ajudá-los a fazer os cursos.
Outra iniciativa é a incorporação de mediadores culturais, membros jovens da comunidade local que fariam a ponte entre o centro cultural e os jovens "nem-nem-nem". Com o projeto, o objetivo é chegar a 50 mil matrículas por ano.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.