WITTENBERG - Entre prédios medievais, imagens de Martinho Lutero e o som de órgãos e sinos, um barco de refugiados recuperado no Mar Mediterrâneo chama a atenção em Wittenberg, Alemanha. A embarcação deteriorada faz parte das comemorações de um dos acontecimentos mais determinantes da história do Ocidente: a Reforma Protestante.
Símbolo do desafio de achar uma resposta à onda migratória que reabriu o caminho para xenofobia na Europa, o barco será usado por autoridades e líderes religiosos como marca do diálogo de católicos e protestantes e da tentativa de recompor uma das fraturas mais profundas já vividas no continente. O objetivo não é debater quem tem razão, mas garantir o respeito à liberdade religiosa e a necessidade de tolerância numa sociedade dividida.
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Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero pregou na porta da igreja de Wittenberg as 95 teses que revolucionaram o cristianismo, a Igreja e a política. O ato de rebeldia se transformou logo em insubordinação e, poucos anos depois, em massacres de civis. Para historiadores, o protestantismo abriu uma via para o início da Era Moderna. Para teólogos, pôs fim à Igreja Medieval.
Na base do questionamento de Lutero estavam as indulgências, vendidas pelo clero para financiar suas igrejas e supostamente reduzir o tempo das pessoas no purgatório. Havia preço até mesmo para o pecado de eventualmente tirar a virgindade de Maria. Lutero defendia que apenas a fé era necessária para a salvação das almas.
Sua iniciativa foi vista como um questionamento às autoridades eclesiásticas em Roma. O alemão ousou dizer que as escrituras são as únicas referências, superiores ao papa. A fratura logo daria espaço às guerras religiosas e colocaria a Europa no cenário de caos e perseguição, que seria resolvido apenas um século depois, quando o Tratado de Westfália de 1648 deu ao continente novas fronteiras e sociedade.
Hoje, Wittenberg volta ao foco das atenções. Na terça-feira, eventos e concertos lembrarão os 500 anos na cidade de menos de 50 mil habitantes. E representantes de religiões de todo o mundo se reunirão num local chamado “jardim de Lutero” para debater pontos de vista e desafios.
“Queremos que a data seja usada para que nossa sociedade possa questionar o mundo em que vivemos”, explicou Kristin Ruske, uma das organizadoras. “Colocamos em evidência o tema da liberdade religiosa e da necessidade de que todos os lados entendam as sensibilidades dos demais e possam praticar sua fé.”
O barco dos refugiados que partiu de Bengazi, na Líbia, com mais de 200 pessoas faz parte desse debate, num momento em que Alemanha e Europa registram um fortalecimento da extrema direita e da presença de estrangeiros. Nos últimos três anos, mais de 1 milhão de refugiados e imigrantes foram recebidos no país de Lutero.
Benjamin Hasselhorn, curador das exposições dos 500 anos, afirma que a comemoração é a primeira de grande porte em que o governo alemão não sequestra a imagem de Lutero para fim nacionalista. “Em 1917, nos 400 anos, a Europa vivia a 1.ª Guerra e o governo usou Lutero como herói”, lembra. O resultado foi a perseguição de luteranos nos Estados Unidos, sob suspeita de colaboração com Berlim.
Em Eisleben, a cidade onde ele nasceu, o fim do regime comunista causou o desaparecimento da indústria local. O desemprego explodiu e jovens se mudaram para o sul do país. Nos apartamentos vazios, hoje moram refugiados e imigrantes que dividem elevadores com alemães irritados com o abandono. O resultado, nas eleições de setembro, foi a vitória do partido de extrema direita AfD.
“A Europa e a Alemanha de hoje se parecem muito com as da época de Lutero. As certezas ideológicas foram rompidas”, disse Hasselhorn. “Uma vez mais, vemos uma Alemanha dividida. Lutero foi quem permitiu que as perguntas fossem feitas. O que queremos é justamente que as perguntas sejam feitas agora.”
Ecumenismo
Teólogos também apontam que, em comemorações passadas, arrogância de um lado ou sentimento de superioridade de outro impediram eventos ecumênicos. Agora, cogitou-se até uma viagem do papa Francisco a Wittenberg, o que não ocorrerá. Mesmo assim, o plano é mostrar que as duas igrejas nunca estiveram tão unidas como hoje e que essa nova relação é uma demonstração a outros grupos de que há espaço para reconciliação, mesmo depois de tanto tempo e de tantas mortes.
No início do mês, o presidente alemão, Franz-Walter Steinmeier, esteve com o papa e defendeu a ideia de que a boa relação entre luteranos e católicos deve ser usada como “modelo”. “Não vamos usar essa data para redesenhar fronteiras. Mas promover a mútua conciliação”, disse Wolfram Kinzig, presidente da Faculdade de Teologia da Universidade de Bonn. “O que une os cristãos é muito mais importante do que o que os afasta. Como consequência, a ênfase foi a de incluir os católicos nesses eventos dos 500 anos.”
Internamente, as suas igrejas também atravessam problemas similares de esvaziamento. Em diversas regiões da Europa, igrejas estão sendo vendidas por falta de uso, enquanto padres ou pastores fazem cultos em diferentes vilarejos por falta de religiosos fixos no local. “Na Finlândia, um país luterano, menos de 1% da população vai à igreja”, conta Veli-Matti Karkkainen, teólogo da Universidade de Helsinque. “O número de crianças recebendo educação religiosa caiu 50% e isso terá uma implicação dramática em 20 anos. Hoje, apenas 20% da população diz acreditar em Deus.”
“Há uma erosão das estruturas eclesiásticas e a perda de fiéis”, confirma Kinzig. “A secularização passou a ser uma marca de grande parte do Ocidente, levando a uma queda dramática da educação cristã.”
O esvaziamento do luteranismo na Europa também vem de questionamentos internos. “Vemos uma proliferação de movimentos pentecostais e uma indiferença ao estudo bíblico”, disse. “Hoje, existem 9 mil denominações de protestantismo”, alertou. Dessas, apenas uma minoria tem relação direta com os movimentos iniciados em Wittenberg.
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