Brasileiros e outros estrangeiros que moram em Portugal têm relatado dificuldades para regularizar a situação no país europeu, mesmo cumprindo os requisitos para permanecer legalmente. O problema, segundo eles e advogados que lidam com essa documentação, é a demora da Agência para a Integração Migrações e Asilo (Aima) para processar os pedidos e a dificuldade de conseguir agendamento para solicitar ou renovar um visto junto ao órgão governamental.
- Os imigrantes em Portugal afirmam que a impossibilidade de prosseguir com os processos ocorre desde quando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foi desmanchado e o governo português criou a Aima para tratar de assuntos de imigração, em outubro do ano passado. O Estadão tentou contato diretamente com o órgão e com a embaixada do país europeu no Brasil, mas não obteve retorno.
A brasileira Jéssica Kilpp mora em Coimbra há cinco anos, tem visto de residência de agrupamento familiar (pois era casada com um cidadão europeu) que vence em novembro. Ela pode solicitar tanto a renovação dessa permissão - por ter contrato de trabalho ou por morar no país há cinco anos -, quanto a cidadania portuguesa, que também pode ser pedida por quem está em Portugal legalmente há ao menos cinco anos.
Enquanto junta os documentos requisitados para entrar com o pedido de cidadania, Jéssica, de 31 anos, tentou agendar a renovação de seu visto pelas duas vias que a Aima oferece: telefone e por meio de formulário no site. Apesar das diversas tentativas há mais de um ano, até hoje não foi chamada.
O relato é semelhante ao de tantos outros brasileiros, que não conseguem se regularizar e veem suas vidas e rotinas diárias afetadas. No ano passado, eram quase 400 mil brasileiros em Portugal, conforme dados oficiais.
Ryan Pablo Silva, aluno de Marketing na Universidade de Aveiro, chegou em Portugal em agosto do ano passado com visto de estudante. O prazo desse documento é de 120 dias, embora a graduação tenha duração até 2026. Desde que chegou ao país, ele fez tentativas para regularizar a sua residência no país.
“Foram muitas ligações diárias não atendidas ou redirecionadas para a secretária eletrônica”, diz o estudante maranhense, de 21 anos. “[Eu e meus colegas] tivemos de baixar um aplicativo de discagem automática e toda vez que caia, ligávamos de novo.”
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Apesar da insistência, não conseguiu agendar entrevista para emissão do documento que garante sua regularidade como estudante de uma universidade lusitana. “Estamos impossibilitados de sair de Portugal, participar de programas de mobilidade estudantil como o Erasmus (de intercâmbios dentro da Europa), conseguir emprego e, no meu caso de ir a um evento educacional importante na França, em novembro″, relata.
“Nós nos tornamos irregulares em Portugal. Podemos permanecer no país, porque as autoridades sabem o que tem acontecido e então prolongam nossa duração aqui [por meio da extensão da validade de documentos vencidos]. Mas não podemos sair do país. Nem para o Brasil nem para outros países da Europa”, acrescenta Silva.
Jéssica também tem receio de sair de Portugal e ser barrada na volta. Ela conta que, ainda que possa continuar trabalhando e ter acesso aos serviços públicos, perdeu alguns direitos e acessos. “Mesmo tendo contrato de trabalho, não consegui parcelar (a compra de) um colchão e móveis numa loja porque a validade do meu visto era menor do que seis meses”, diz ela, de 31 anos.
Já Silva, além de não conseguir visitar a família no Brasil ou participar de eventos e viagens educacionais fora de Portugal, relata que muitos estudantes estrangeiros estão com dificuldades para arcar com as contas. Isso porque, sem a documentação em dia, não conseguem emprego.
- A situação tem acontecido com diversos estrangeiros que precisam de agendamento novo para solicitar ou renovar qualquer tipo de visto. Os que são elegíveis para renovação online não têm problemas, mas todos aqueles que precisam de agendamento presencial enfrentam a mesma situação.
- O Ministério das Relações Exteriores do Brasil afirma dialogar com as autoridades portuguesas. Destaca a possibilidade, desde julho de 2023, de “certificados de nacionalidade digitais para obtenção do estatuto de igualdade, com ferramentas de verificação via código QR”.
- O prazo para recebimento do documento, necessário para o reconhecimento da equiparação dos direitos dos brasileiros em Portugal ao dos portugueses, “passou de até 4 meses para até 5 dias úteis”, conforme a pasta.
“Começou a demorar mais do que já demorava para emitir os cartões de residência e os agendamentos dos vistos”, afirma Tabatha Walazak, advogada especialista em direito migratório e nacionalidade portuguesa. Ela própria vive no país há mais de quatro anos.
- Apesar dos problemas, os estrangeiros que estão em Portugal aguardando agendamento conseguem continuar legalmente no país devido a uma extensão da validade de documentos feita pelo governo português na pandemia. Todos os documentos expirados - incluindo vistos - estão válidos até junho de 2025.
Mas a medida não resolve todas as consequências da falta de visto. “Ajuda muito, mas não soluciona nosso problema em algumas questões. Por exemplo: quero comprar uma casa e pegar empréstimo no banco, e [o visto próximo a expirar e sem renovação] pode ser um bom motivo para o empréstimo ser negado”, diz Jéssica.
No caso dos que desejam viajar para o exterior, ainda que possam retornar devido à validade estendida dos documentos, o decreto só é válido em território português. Ou seja, outros países da União Europeia podem não reconhecer a medida. “A pessoa pode sofrer alguma sanção, como multa ou ser impedido de continuar o trajeto”, diz Tabatha.
Devido à demora da Aima, estrangeiros têm recorrido aos tribunais, solicitando a emissão ou renovação de cartão de residência, ou simplesmente para agendamento junto à agência. “Temos tido um bom retorno da justiça, mas a Aima está agindo apenas quando o juiz manda”, diz.
A especialista diz que o governo português justifica tamanha demora pela grande quantidade de imigrantes com destino ao país e pelo uso indevido de alguns mecanismos de imigração.
Portugal ainda abre as portas para brasileiros?
Para além da facilidade do idioma, Portugal tem sido escolhido por brasileiros como porta de entrada para a Europa pela facilidade em conseguir permissão para residir no país, e até mesmo a cidadania portuguesa - grande atrativo para estrangeiros, dada a possibilidade de circular pela União Europeia.
“Se comparar com muitos outros países da Europa e até do mundo, as condições de pedido e concessão de visto aqui são mais leves do que a grande maioria”, afirma a advogada Tabatha Walazak.
Para falantes de língua portuguesa, o acesso é ainda mais fácil, devido à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Os cidadãos de países membros da comunidade podem pedir autorização para residir em Portugal de forma facilitada.
A autorização para residir no país passou a ser cada vez mais solicitada nos últimos anos. Muitos brasileiros entram como turistas (que não precisam de visto para entrar na União Europeia) e solicitam o documento para se estabelecer no país de forma legal. Os requisitos eram possuir visto consular - como o de trabalho ou estudo - ou apenas preencher uma manifestação de interesse, usada pela maioria.
“Esse processo começou a ser utilizado em volume tão grande, que a espera começou a ser de dois anos, já um sinal de que o poder público não dava conta da alta demanda”, afirma a advogada.
Com isso, o governo suspendeu, no mês passado, a possibilidade de conseguir a autorização de residência somente com uma manifestação de interesse e um contrato de trabalho, excluindo esse caminho.
Bianca Alves, paulista que mora em Lisboa há pouco mais de um ano, é uma das que entraram como turistas visando se legalizar como moradora. Já com trabalho no país e tendo protocolado a sua manifestação de interesse em maio do ano passado, ela ainda não obteve resposta da Aima quanto ao pedido.
Como manifestou interesse antes do decreto que exclui essa possibilidade, seu pedido deve ser analisado conforme a lei vigente na época. No entanto, a falta de respostas impacta a vida dela, que não pode comprar uma casa ou visitar seus parentes em outros países, além de não conseguir começar uma faculdade (o valor para não residentes é bem mais alto).
“Fora outros serviços públicos, que também pedem o cartão de residência. E a conta bancária consegui apenas em um banco, mas não consigo acessar muitas funções da minha conta”, acrescenta Bianca.
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