Aos 80 anos, completados amanhã, a Rádio Nacional, principal veículo de comunicação brasileiro nas décadas de 40 e 50 do século passado, recebeu uma má notícia: o prédio onde funcionou até quatro anos atrás, A Noite, na Praça Mauá, será vendido e seu auditório histórico, por onde passaram todos os grandes nomes da chamada era de ouro do rádio, não deverá ser preservado.
Pertencente ao governo federal, o edifício A Noite, primeiro arranha-céu da América Latina, foi inaugurado em 1929 e está vazio. Com o processo de revitalização da zona portuária e a derrubada do Elevado Perimetral, a construção, de 22 andares, passou a destoar da paisagem, que inclui a vista livre para a Baía de Guanabara, o Museu de Arte do Rio (MAR), o Museu do Amanhã e o Boulevard Olímpico.
A Rádio Nacional, hoje abrigada no prédio da TV Brasil, na Lapa, ocupava quatro dos andares do edifício e o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (Inpi), os outros 18. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) está preparando o edital de alienação, a ser lançado em novembro. A ideia é fazer permuta com outro prédio, que abrigará os funcionários do Inpi, atualmente instalado em imóvel alugado. O A Noite viraria então um hotel, um prédio comercial ou residencial. “A preservação do patrimônio histórico é uma das prioridades, mas os encargos do comprador ainda não foram definidos”, informou, em nota ao Estado, a SPU.
Não há indicativo de que o edital trará como cláusula a manutenção dos três antigos estúdios e do auditório, reformados entre 2003 e 2004, ao custo de R$ 2,5 milhões, e reabertos com a presença de artistas da Era do Rádio. Por ali já passaram os cantores Francisco Alves (1898-1952), Sílvio Caldas (1908-1998), Cauby Peixoto (1931-2016), Marlene (1922-2014) e Emilinha Borba (1923-2005). “O emblemático edifício A Noite, hoje sem utilização, será alienado a um empreendedor privado”, informou a SPU
A companhia americana Tishman Speyer, dona de prédios icônicos de Nova York como o Rockefeller Center e o Chrysler, é um dos possíveis interessados. O edifício foi avaliado em 2015 em R$ 137 milhões.
Crime. Com fachada e foyer em estilo art déco, o prédio foi projetado pelo francês Joseph Gire, o mesmo arquiteto do Hotel Copacabana Palace, e foi um dos principais mirantes da cidade. Está em mal estado de conservação há anos – o Inpi não dispõe de verba para reformá-lo na totalidade –, o que ficou mais evidente com a reabertura da praça, há um ano, e com a movimentação maior na região, tomada por milhões de pessoas no período da Olimpíada, em agosto, e agora na Paralimpíada.
O aspecto atual da edificação de 87 anos não é bom. Ainda bastante alto em comparação com outros edifícios da zona portuária, o arranha-céu está cercado por tapumes de madeira amparados em estacas de ferro cobertas de ferrugem. O contraste com a nova Praça Mauá é nítido.
“A prefeitura conversa com o governo federal desde 2010 sobre a necessidade de resolver o problema do prédio. O auditório está sem uso, e tenho medo de que a exigência de manter o espaço da rádio trave o empreendimento. Isso tem de ser tratado com bom senso. É preciso ver o que é melhor para a cidade”, disse Alberto Silva, presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (Cdurp).
Já os defensores da memória da rádio temem a destruição de sua memória. “É mais um absurdo que comprova a falta de interesse do poder público pela cultura. É um crime de lesa-memória que um dia a história vai condenar”, disse o compositor Edino Krieger, que fez arranjos para orquestras da rádio nos anos 1960 e segue seu ouvinte. “Podiam pelo menos colocar uma placa. É muita história ali para ser jogada fora”, afirmou o sambista Tantinho da Mangueira, que se apresentou ali nos anos 50, ainda garoto.
“Além do auditório e do estúdio de radioteatro, ainda estão lá o piano do Radamés Gnattali (1906-1988) e a cabine telefônica que recebia ligações diretas do presidente Getúlio Vargas. Se a preservação desses andares não estiver contemplada no edital, vão destruir tudo”, teme o engenheiro Luiz Murilo Tobias, vice-presidente do Instituto Funjor, que trabalha pela preservação da memória artística brasileira e faz campanha no Facebook pela causa da Rádio Nacional.
Repórter Esso. A rádio foi estatizada por Getúlio em 1937. Em 1940, estreou a primeira radionovela do País, Em Busca da Felicidade. Dali para a frente, pertencer ao elenco da rádio se transformou no sonho de todo artista. Radialistas e atores como Paulo Gracindo (1911-1995), Mário Lago (1911-2005) e César de Alencar (1917-1990) tornaram-se nacionalmente conhecidos a partir do sucesso da Nacional. Em 1941, a Nacional poria no ar o Repórter Esso, que viria a ser o noticiário mais acompanhado pelos brasileiros. A decadência chegaria a partir dos anos 1960, com a popularização da televisão.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.