RIO DE JANEIRO - O tiro que matou a menina Ágatha Félix, de 8 anos, partiu do fuzil de um policial militar, segundo inquérito concluído pela Delegacia de Homicídios da capital. O cabo foi indiciado por homicídio doloso, quando há a intenção de matar, porque, de acordo com a investigação, não havia tiroteio no local e houve um “erro de execução” por parte do agente. O relatório foi enviado ao Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ).
Ágatha estava dentro de uma Kombi, no Complexo do Alemão, em 20 de setembro, acompanhada da mãe, quando foi atingida pelo fragmento de um projétil. Ela chegou a ser levada para a Unidade de Pronto Atendimento do Alemão (UPA) e transferida para o Hospital Getúlio Vargas, mas não resistiu aos ferimentos. Na ocasião, os parentes da menina e outras testemunhas já apontavam a PM como responsável pela morte.
O inquérito tomou como base depoimentos de testemunhas, de policiais militares em serviço na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da região, que estavam no local do crime, diversas perícias e o laudo da reprodução simulada, feita em outubro. O resultado dessa reprodução aponta que houve erro de execução por parte do PM, lotado na UPP da Fazendinha.
Segundo as investigações, o policial tentou atingir duas pessoas que passaram em uma moto em alta velocidade, mas o projétil ricocheteou em um poste e um fragmento atingiu Ágatha nas costas. De acordo com o inquérito, o PM teria confundido uma esquadria de alumínio que um dos homens levava na moto com uma arma. “Até a moto passar, não houve relato de tiros”, afirmou o delegado Marcus Drucker, responsável pela investigação. “As testemunhas disseram isso e nós provamos com a perícia e os laudos: nenhum dos ocupantes da moto atirou ou estava armado.”
Por isso, o agente foi indiciado por homicídio doloso – ou seja, ele não atirou em legítima defesa e, portanto, assumiu o risco de matar. “Ele foi indiciado por homicídio doloso”, explicou o delegado titular da DH, Daniel Rosa.
A Polícia Civil pediu o afastamento do cabo da UPP e a proibição de contato com testemunhas do caso. A prisão do agente não foi pedida porque, de acordo com as autoridades, não havia necessidade. “Isso não impede que ele seja preso futuramente”, esclareceu Rosa. “Neste momento, ele se apresentou aqui na DH todas as vezes em que foi chamado, tem residência fixa, e não há risco de atrapalhar as investigações.”
A PM informou que o agente já está afastado de suas atividades nas ruas. Em nota, a secretaria de Estado informou que lamenta o “triste episódio” e reforça solidariedade à família de Ágatha. Destaca ainda que continua a apuração interna por inquérito policial-militar (IPM).
Governador não vai rever política de segurança
Este ano, 21 crianças foram vítimas de balas perdidas, e seis morreram – Ágatha foi a quinta. Depois dela, Ketellen Umbelino, de 5 anos, foi morta quando estava com a mãe, a caminho da escola, em Realengo. Defensores de direitos humanos vêm denunciando o que chamam de “política de extermínio” do governo de Wilson Witzel. Embora os índices de roubo de carga, roubo de veículos e homicídios em geral tenham diminuído na atual gestão, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou 18,5% em relação ao ano passado.
Nesta terça-feira, 19, o governador reafirmou que não há razão para rever a política de segurança pública. “Não há política de extermínio, pelo contrário”, garantiu. “Temos uma redução nos índices de criminalidade; nos últimos 11 meses, 900 pessoas deixaram de morrer. Mas são centenas de operações policiais reais e veremos que o número de erros é pequeno.”
Questionado novamente, o governador afirmou que “a polícia está fazendo o trabalho dela, reduzindo os índices de violência”. “Em qualquer profissão existem erros e acertos. Precisamos evitar que os erros aconteçam, com treinamento e análise dos casos.”
3 Perguntas para Silvia Ramos*
*Silvia Ramos é cientista social e coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança Pública, do CESeC, Universidade Candido Mendes.
1. O que o caso Ágatha fala sobre a violência policial no Rio? É inaceitável que a morte de Ágatha seja a primeira em que a polícia civil conclui, com relativa rapidez, que houve erro, excesso e descaso com a vida dos moradores. Colecionamos, na memória fúnebre das comunidades, histórias de crianças, adolescentes e idosos mortos por aqueles que deveriam proteger. Jamais a polícia admite que cometeu excesso de uso da força e matou sem razão.
2. O caso poderia servir para revisão dos protocolos de atuação da polícia? São necessários protocolos claros e precisos sobre a preservação da vida. Todas as polícias do mundo usam um princípio que é “maior efetividade com menor letalidade”; a polícia do Rio transformou isso em: “grande letalidade independente de efetividade”. Eles cultivam práticas aceitas dentro da cultura policial de entrar na favela atirando e qualquer pessoa negra é suspeita. Contabilizando só este ano, de janeiro a setembro, houve 1.402 mortes decorrentes de ação policial no Rio.
Não precisa fazer milagre ou inventar uma coisa nova, precisa, sim, retomar protocolos que polícias, inclusive brasileiras, seguem. Em Minas, Estado com mais habitantes que o Rio, houve, em 2018, 151 mortes produzidas pela polícia. No Rio, no mesmo período, foram 1,5 mil. Não estamos falando de buscar alguma coisa nova e longe. Estamos falando até mesmo de padrões brasileiros. O Rio passou a ser um caso fora da curva a nível mundial.
3. Em que medida isso se relaciona com o discurso do atual governo? Com a recomendação de autoridades para atirar e matar antes de perguntar - desde que seja dentro de favelas e os alvos sejam jovens negros - tem sido ainda mais frequente que policiais aleguem que confundiram guarda chuvas, ferramentas, esquadrias e copos de café com supostos armamentos. Para muitos policiais do Rio, a morte de jovens de favelas sempre tem uma justificativa. Jovens de favelas são vistos como inimigos principais e devem ser eliminados. As favelas são tratadas como territórios de outros países, onde não há direitos a respeitar.
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