Os roubos e furtos de armas de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) dispararam nos últimos anos, conforme balanço do Exército, responsável por monitorar os estoques. A média mensal de delitos do tipo saltou de 62 equipamentos levados em 2018 para 181 neste ano. A alta coincide com a flexibilização de regras de registro de CACs entre 2019 e 2022.
Leia também
Autoridades e especialistas temem que, diante da maior disponibilidade, as armas parem nas mãos dos bandidos. Desde 2023, normas para cadastro de caçadores e colecionadores ficaram mais rígidas, o que reduz a circulação, mas também faz estoques encalharem nas lojas. Há ainda o receio de falsas denúncias de assaltos para camuflar o desvio das armas para o crime organizado.
O Ministério da Justiça diz que, junto do Exército, trabalha na regulamentação das novas regras, o que deve ser concluído até 1º de janeiro do próximo ano. As medidas incluem transferir a competência para registro e fiscalização das armas do Exército para a Polícia Federal. O lançamento de um programa de recompra, para retirar equipamentos de circulação, também é avaliado.
Segundo dados do Exército, em junho de 2024 havia 1,366 milhão de armas registradas por CACs. O cadastro de caçadores e atiradores foi facilitado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o que tem sido revisto pela gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Desde julho de 2023, quando o governo editou novas regras para venda, posse e porte, armas que antes podiam ser compradas pelo cidadão comum, como pistolas 9 mm, ponto 40 e ponto 45, passaram a ser exclusivas das forças de segurança.
Se antes eram permitidas até quatro armas para defesa pessoal, a mudança reduziu para duas e passou a exigir comprovação da necessidade. Caçadores podiam ter até 30 armas e agora só podem seis. Atiradores também tiveram o acesso reduzido. Armas muito procuradas que estavam em estoque já não puderam ser vendidas ao consumidor comum.
O programa de recompra de armas, prometido pelo governo, ainda não saiu do papel. O ministério diz que a medida ainda está em avaliação. Procurada, a gestão Bolsonaro não falou. Associações ligadas à indústria de arma e aos CACs também não comentaram.
Com isso, o desvio desses equipamentos preocupa. Em agosto, foram roubadas 79 armas e cerca de 2 mil munições de uma loja de armas que também funcionava como clube de tiro em Novo Hamburgo (RS). Seis armas foram recuperados e três suspeitos, presos.
No mês anterior, 88 armas curtas e 10 longas, incluindo fuzis, foram levadas de um clube de tiro de Itaiópolis (SC) – cinco suspeitos foram presos. Crimes similares foram reportados no Ceará, no Amazonas e no Espírito Santo.
Além disso, há casos de falsos assaltos. Em Ceilândia (DF), em junho, o furto de cerca de 100 armas de fogo foi denunciado pelo dono de uma loja.
A polícia descobriu que foi alugado um imóvel vizinho e aberto buraco na parede, dando acesso ao cofre com as armas. “As investigações indicaram que o proprietário da loja comercializava armas de forma ilícita a indivíduos suspeitos de integrarem organização criminosa”, informa a Polícia Civil.
Duas pessoas foram presas na Bahia, sob suspeita de intermediar a venda de armas para o Bonde do Maluco (BDM), facção aliada ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Um dos suspeitos, funcionário da loja, levou as armas ao Nordeste.
Segundo a polícia, as investigações estão em curso para responsabilizar criminalmente os compradores. A defesa do proprietário da loja disse que ele é vítima e não cometeu ato ilícito, o que será demonstrado à Justiça.
Mercado clandestino
“Temos percebido acréscimo nesse tipo de crime, onde as armas são vendidas clandestinamente”, disse ao Estadão o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública, Sandro Avelar. “São armas, muitas vezes de calibre restrito, que acabam chegando nas mãos do crime organizado”, acrescentou ele, titular da pasta no Distrito Federal e delegado da PF.
O Ministério da Justiça não tem levantamento sobre falsos relatos de crimes, mas casos têm sido reportados em outros Estados. Em maio, as polícias do Amapá desencadearam a Operação Parabellum para apurar o desvio de armas em uma das principais lojas de Macapá. A investigação apurou que uma funcionária relatou o furto de várias pistolas que, na verdade, tinham sido repassadas para uma facção.
A vendedora pediu o desligamento do emprego um dia após denunciar o falso furto. A investigação apurou que o marido, com passagem por tráfico de drogas, era ligado a uma organização criminosa.
Em abril, a Polícia Civil de Tocantins desencadeou a Operação Clandestino, para apurar um esquema de comércio ilegal de armas em Araguaína. As investigações começaram após um CAC registrar boletim de ocorrência de furto de armas e munições. A polícia descobriu que, na verdade, as armas de uso restrito foram vendidas ilegalmente para outros CACs.
Segundo o Ministério da Justiça, o fortalecimento do programa de entrega voluntária e o programa de recompra, em avaliação pela pasta, compõem iniciativas voltadas para a reduzir os acervos em circulação e integram esforços de retomada do controle responsável de armas e munições no Brasil.
O Exército contabiliza furtos/roubos de CAC, pessoas jurídicas, Forças Armadas, bombeiros e polícias militares. A PF controla pessoas físicas (população civil), policiais civis e guardas municipais civis.
A PF informou que os dados sobre estoques e furtos de armas permanecem sob responsabilidade do Exército Brasileiro, uma vez que a migração de competência dos CACs e outras categorias para a Polícia Federal só ocorrerá em 1º de janeiro de 2025.
Em caso de furto de armas, o cidadão hoje tem de registrar a ocorrência na PF e, se for arma cadastrada no Exército, fazer registro do furto no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), o que pode ser feito por meio eletrônico.
Programa de recompra é necessário, dizem especialistas
Especialistas elogiam o aumento das restrições à posse e ao porte, mas defendem aperfeiçoar as estratégias para reduzir as armas em circulação. O programa de entrega voluntária, do governo federal, paga entre R$ 150 e R$ 450 por arma, dependendo do modelo, e as destrói.
“O ideal seria uma campanha de recompra, para ser um canal legal, viável e seguro para que as pessoas façam a entrega e também não saiam com prejuízo tão grande’”, diz Natália Pollachi, diretora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Segundo ela, muitas armas que até pouco tempo podiam ser usadas em clubes de tiro agora tornaram-se “elefantes brancos”, sem poder ser usadas ou recompradas por preço compatível com o mercado.
”Há pessoas que investiram R$ 3 mil, R$ 4 mil, R$ 5 mil em uma arma de fogo e que agora estão com ela em casa”, diz Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ele, há um “mercado ilegal ávido por essas armas”.
Além de maior envolvimento do governo federal, os pesquisadores cobram mais presença dos Estados. Natália cita que a Paraíba, que passou a exigir que roubos e furtos de armas sejam notificados apenas presencialmente, buscando comunicação mais detalhada.
Já no Espírito Santo, por exemplo, há uma delegacia especializada em combater o tráfico de armas, o que ajuda na identificação de padrões e na recuperação de equipamentos roubados.
O Estadão procurou a Associação Nacional das Indústrias de Armas e Munições (Aniam) e a Associação Brasileira de Importadores de Armas e Materiais Bélicos (Abiamb), mas não obteve retorno. A Associação Brasileira de Caçadores Atiradores e Colecionadores também não respondeu.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.