‘Saidinha’ de presos: como está o projeto de lei que prevê acabar com benefício a detentos?

Projeto foi aprovado pela Câmara em 2022, mas agora está parado no Senado; extinção da medida divide especialistas

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Foto do author José Maria Tomazela
Atualização:

Um projeto de lei que tramita no Senado prevê o fim das ‘saidinhas’ temporárias de presos em datas comemorativas, hoje permitidas pela Lei de Execução Penal. O modelo divide opiniões entre especialistas. Parte defende a manutenção da lei, com aperfeiçoamento nos critérios de concessão; outros dizem que a saída temporária e traz riscos de mais crimes.

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Neste fim de semana, um sargento da Polícia Militar foi morto a tiros em Belo Horizonte, durante perseguição a criminosos. O suspeito era um detento, que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto. Já no Rio, após o feriado do réveillon, três chefes do tráfico de drogas não voltaram para a cadeia após saírem para o feriado.

O benefício é concedido a presos do regime semiaberto que apresentam bom comportamento. O PL 2.253/2022, que extingue a medida, foi aprovado pela Câmara em agosto de 2022 e está na Comissão de Segurança Pública do Senado.

O texto aprovado pela Câmara é o substitutivo do relator, o então deputado Capitão Derrite (PL-SP) e hoje secretário da Segurança Pública em São Paulo. Ele alterou a proposta inicial que limitava as saídas, para abolir completamente o benefício.

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Quando era deputado federal, Guilherme Derrite relatou projeto de lei que prevê acabar com as "saidinhas" de presídios Foto: Werther Santana/Estadão

Na comissão de Segurança, houve pedido de vista do senador Fabiano Contarato (PT-ES). Ele afirma que precisa analisar melhor o projeto antes da votação. Com o recesso parlamentar, iniciado em 23 de dezembro, a tramitação está parada.

Defensores da saída temporária afirmam que ela é importante para a ressocialização do detento e faz parte do processo de progressão de regime no cumprimento da pena. A lei atual permite que presos de bom comportamento do regime semiaberto (com menor tempo de pena a cumprir) deixem a prisão para visitar os familiares durante feriados, frequentar cursos e exercer atividades de trabalho.

A autorização é dada aos detentos que tenham cumprido ao menos um sexto da pena, no caso de primeira condenação, e um quarto, quando reincidentes. As ‘saidinhas’ acontecem até cinco vezes por ano e não podem ultrapassar o período de sete dias.

Os críticos da medida afirmam que parte dos condenados aproveita a saída temporária para cometer novos crimes. Derrite disse nas redes sociais no sábado, 6, que o benefício é “absurdo”, referindo-se à morte do policial mineiro.

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“A saída temporária já apresentou diversas provas de que é maléfica para a sociedade, mas dessa vez um policial morreu nas mãos de um criminoso que deveria estar atrás das grades, mas estava solto por conta desse benefício que alguns ainda defendem”, escreveu.

Momento em que homem afetua disparos contra policia durante perseguição em BH Foto: PM/MG

O projeto que está no Senado prevê também a exigência de exames criminológicos para progressão de regime penal e o monitoramento eletrônico obrigatório dos detentos que passam para os regimes semiaberto e aberto – este último prevê o cumprimento do restante da pena fora da prisão.

Em dezembro, o Conselho Nacional dos Secretários de Justiça (Consej) enviou ofício ao relator do PL, senador Sérgio Petecão (PSD-AC) pedindo mais prazo para apresentar nota técnica sobre o tema.

“Dada a complexidade inerente ao objeto deste Projeto de Lei, solicitamos que a Comissão de Segurança Pública do Senado considere postergar a discussão até após o recesso parlamentar (1º de fevereiro)”, aponta o documento.

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O governo federal também demonstrou interesse em aprofundar as discussões sobre o tema. O representante do Conselho de Polícia Criminal e Penitenciária do Ministério de Justiça e Segurança Pública, Alexander Barroso, defendeu a inclusão de mais órgãos públicos nos debates, entre eles o Ministério Público Federal, o Judiciário e a Defensoria Pública.

Flávio Bolsonaro é relator do PL

A proposta aprovada pela Câmara está desde março de 2023 sob a relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Em seu relatório, o senador afirmou que a superlotação e a precariedade das instalações do sistema carcerário prejudicam a ressocialização adequada dos presos e, ao se permitir que os presidiários se beneficiem das saídas temporárias, o poder público coloca em risco toda a população.

Filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Flávio e seus irmãos têm como uma de suas principais bandeiras políticas o endurecimento das leis penais.

O senador Jorge Kajuru (PSB-GO) apresentou emenda substitutiva ao projeto, defendendo a manutenção das saídas temporárias, por permitir ao preso a reinserção social e contribuir para a redução da reincidência. Para ele, o projeto original falha ao conferir o mesmo tratamento ao condenado primário, de bom comportamento, e ao reincidente. A emenda substitutiva não foi acatada pelo relator.

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Alguns secretários de segurança pública pressionam os parlamentares para derrubar logo a ‘saidinha’. No último dia 4, a pasta paulista comandada por Derrite divulgou a prisão de 712 detentos por descumprimento às regras previstas em lei para permanecer nas ruas no período de 23 de dezembro a 3 de janeiro. Destes, 81 foram presos após serem flagrados cometendo algum tipo de crime, segundo a nota da secretaria.

Os críticos das ‘saidinhas’ destacam os crimes violentos praticados por detentos para argumentar a favor da proibição. No caso de Minas, o sargento Roger Dias da Cunha participava de uma perseguição policial no bairro Novo Aarão Reis, zona norte de BH, quando foi baleado pelo suspeito, identificado como Welbert de Souza Fagundes, de 26 anos. O detento havia saído de um complexo penitenciário nas vésperas do Natal e não retornou.

Outro suspeito que teria participado do ataque ao policial também foi preso. Ele estava em liberdade condicional, segundo a polícia. No interior de São Paulo, um detento que estava de ‘saidinha’ confessou ter matado a cozinheira Renata Teles, em um hotel de Campinas, no dia 24 de dezembro.

Segundo os registros policiais, ele tinha sido condenado a 12 anos de prisão por feminicídio. Após a prisão, o homem foi levado de volta à penitenciária onde cumpria a pena, em Sorocaba.

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Já no Rio, o Disque-Denúncia anunciou que três chefes do tráfico não haviam regressado da saidinha de Natal. Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio, dos 1.785 presos que receberam o benefício da Justiça para a visita à família em dezembro, 255 evadiram e outros cinco receberam alvará de soltura durante esse período.

Assunto movimenta Congresso há mais de dez anos

As tentativas de abolir as saídas temporárias não são recentes. Em 2012, a senadora Ana Amélia (RS) propôs que o benefício fosse concedido apenas uma vez por ano a presos com uma única condenação.

Na Câmara, o projeto de lei foi modificado no relatório do então deputado Derrite e juntado a outros 46 projetos sobre o mesmo assunto, apresentados desde 2013. Um projeto de 2018 do senador Ciro Nogueira (PP-PI), desarquivado em 2013, também tenta revogar as saídas.

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) apresentou proposta para agravar os crimes cometidos durante saídas temporárias. Atualmente, presos condenados por crimes hediondos estão fora do benefício, que também pode ser negado em casos de crimes sexuais e outros delitos graves.

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Os presos beneficiados devem permanecer durante a noite no endereço de familiares informado à Justiça. Eles são proibidos de frequentar bares, casas noturnas e baladas, ainda que em local aberto.

Especialistas divergem sobre fim da ‘saidinha’

Os especialistas também divergem sobre as saídas temporárias. Para a diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, Raquel Gallinati, a lei previu a medida como tentativa do sistema penal em ressocializar o preso. “No entanto, o sistema de execução penal apresenta distorções, já que muitos indivíduos não cumprem a pena no presídio adequado quando estão no regime semiaberto”, diz.

“A fase que deveria ser de ressocialização torna-se, na prática, uma espécie de pós-graduação no crime, pois os detentos continuam na penitenciária cumprindo pena junto com aqueles em regime fechado”, acrescenta.

Segundo Raquel, o benefício foi desvirtuado, sendo utilizado frequentemente para evitar rebeliões e acalmar os presos, desviando-se do propósito original.

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Para o advogado Leonardo Pantaleão, especialista em Direito e Processo Penal, o instituto da saída temporária é importante para a ressocialização do preso, mas os critérios para concessão precisam ser aperfeiçoados. “O que precisa melhorar é o critério de análise de quem tem condições de se beneficiar dessa benesse. Talvez os critérios hoje sejam muito tênues”, diz.

“É preciso um critério um pouco mais rigoroso, uma análise mais aprofundada sobre as pessoas, para ver, por exemplo, casos de psicopatias”, alerta.

“Entendo que a solução não é simplesmente abolir o benefício, que seria uma solução cômoda por parte do Estado. A solução é investir nos requisitos e no aperfeiçoamento técnico de pessoas que, juntas, possam avaliar aqueles que têm sua periculosidade melhor aferida antes de ser concedido o benefício com critérios genéricos”, defende.

Já para o advogado criminalista Leonardo Watermann, o problema da lei atual é a análise genérica, que trata igualmente os presos que cometeram crimes violentos e os demais. “Quando o preso cometeu crime anterior grave, com violência, não deve ser beneficiado com essas ferramentas de ressocialização, inclusive progressão de regime. Essas ferramentas devem ser mantidas para os praticantes de crimes sem violência, como estelionato, furto e outros de menor potencial ofensivo.”

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A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Welbert Fagundes, suspeito de ter atirado contra o policial em BH.

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