PUBLICIDADE

Mudança na saidinha de presos valerá para detentos atuais? Entenda o que pode mudar

Especialistas têm opiniões divergentes sobre a possibilidade de que alteração na Lei de Execuções Penais, aprovada na Câmara nessa quarta, valha apenas para futuros presidiários

PUBLICIDADE

Foto do author José Maria Tomazela

A Câmara dos Deputados aprovou nessa quarta-feira, 20, em votação simbólica, o projeto de lei que acaba com a “saidinha”, a saída temporária de presos em datas comemorativas. A proposta apenas mantém o benefício para o caso de condenados inscritos em cursos profissionalizantes ou que cursem os ensinos médio e superior, somente pelo tempo necessário para as atividades acadêmicas.

O texto segue para sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tem prazo de 15 dias para tomar a decisão. Pela lei atual, condenados no regime semiaberto podem sair cinco vezes ao ano por até sete dias corridos para visitar a família, estudar e participar de atividades de ressocialização.

Pela lei atual, condenados no regime semiaberto podem sair 5 vezes ao ano por até 7 dias corridos para visitar a família, estudar e participar de atividades de ressocialização Foto: Divulgação/MP-BA

PUBLICIDADE

Especialistas ouvidos pelo Estadão se dividem sobre os efeitos do projeto para os atuais detentos. Enquanto alguns criminalistas entendem que a nova lei não pode retroagir em desfavor deles, outros defendem que os efeitos alcançam até quem já está encarcerado hoje.

O estudo deve ser na mesma comarca onde o detento cumpre pena e poderá sair todos os dias, durante o tempo necessário para assistir às aulas. O beneficiado precisa passar por exame criminológico e, se não tiver bom desempenho nos estudos, a medida poderá ser cancelada.

O argumento dos que defendem o endurecimento na lei é a quantidade de presos que saem e não retornam à cadeia – cerca de 5% não voltam –, além dos casos de crimes violentos praticados durante a “saidinha”.

Em junho de 2023, último dado disponível no sistema de informações da Secretaria Nacional de Política Penais, o país tinha 644.794 presos custodiados em celas. Destes, 126 mil cumprem pena no regime semiaberto e apenas 8% saem da prisão para estudar.

A discussão é se o novo regramento pode atingir de imediato a população carcerária. O advogado criminalista Rafael Paiva entende que a norma retroage. “É um projeto que vale para todos os presos, pois é matéria processual. Entendo que retroage para todos os presos, inclusive para crimes praticados antes dessa lei”, diz.

Publicidade

Já para Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o PL não produz efeitos retroativos, em razão do princípio de que não é permitida atualização da lei que prejudique o condenado. “A legislação só se aplica dali para diante. Todos os presos que estão no sistema ou entram antes da lei vigorar continuam com direito às saídas temporárias”, afirmou o advogado criminalista em entrevista ao vodcast Dois Pontos, do Estadão.

“Há decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça que entendem que apenas as alterações benéficas passam a valer imediatamente”, diz o especialista em Direito Penal Enzo Fachini, da FVF Advogados.

“No entanto, é possível argumentar de que alterações na Lei de Execução Penal podem passar a valer imediatamente, por regularem como a pena deve ser cumprida, e não versarem sobre Direito Penal em si, em que o endurecimento da legislação só valeria para fatos acontecidos após a alteração legislativa.”

O promotor de Justiça Alexandre Daruge, responsável pelo Departamento Estadual de Execuções Criminais da 4.a Região, com sede em Campinas, também acredita que a lei pode retroagir em casos de crimes violentos. “É possível argumentar que, para os crimes violentos não cabe a saidinha”, disse, também em participação no vodcast Dois Pontos.

PUBLICIDADE

Para André Santos Pereira, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, a Lei de Execução Penal, que dispõe sobre a “saidinha”, pode ser analisada nos aspectos penal, processual penal ou misto (penal e processual).

“Se considerarmos a saída temporária como benefício de natureza estritamente penal, estaríamos diante da hipótese de irretroatividade da lei prejudicial ao apenado’, diz o delegado. “Portanto, não impactaria em desfavor dos que praticaram crimes antes da entrada em vigor da nova lei (se for sancionada).”

Em outras palavras, segundo ele, quem já está preso continua tendo o benefício e quem praticar crime depois dessa lei não fará mais jus ao direito das saídas temporárias.

Publicidade

Exigência de exames criminológicos pode aumentar gargalo no sistema

A nova regra passa também a exigir exames criminológicos, mas os especialistas concordam que o sistema prisional não têm estrutura. O procedimento deve avaliar “autodisciplina, baixa periculosidade e senso de responsabilidade”.

Para Enzo Fachini, esses exames já são um gargalo. “O que se vê na prática são meses de espera para o exame criminológico, ainda que realizado em parcela pequena da população carcerária. Na atual estrutura, será impraticável um exame criminológico sério e detido sobre cada preso. Os atrasos serão cada vez maiores”, diz.

O delegado Pereira acredita que, com o aumento na demanda pelos exames, a fila vai aumentar. “É provável que com o aumento da demanda por esse exame, os atrasos também aumentem”, afirma.

A proposta que acaba com a saída temporária do semiaberto foi apresentada em 2011 e estava na pauta do Senado desde agosto de 2022, após a aprovação do texto pelos deputados. O tema ganhou destaque após após o assassinato de Roger Dias da Cunha, sargento da Polícia Militar de Minas Gerais.

O autor dos disparos foi um homem de 25 anos que não retornou para a penitenciária após ser beneficiado com a saída temporária de fim de ano.

Os senadores acrescentaram emendas ao projeto de lei original e, em razão das alterações, o texto voltou à Câmara. O projeto aprovado em agosto de 2022 extinguia o instituto da saída temporária de forma absoluta.

Emenda incluída no Senado estabeleceu a exceção do estudo externo. O benefício é para os presos que frequentarem cursos supletivos profissionalizantes, ensino médio e superior. Presos por crimes hediondos ou com grave ameaça não são contemplados.

Governadores pressionam pelo fim do benefício

O fim da “saidinha” tem sido alvo de pressão por governadores que defendem o endurecimento das leis contra os ocupantes do sistema carcerário, como o de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). No último dia 12, Freitas exonerou seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, que também é deputado federal licenciado, para relatar o projeto na Câmara.

Conforme o governo paulista, apenas em um dia da primeira saída de presos deste ano, a Polícia Militar prendeu 78 pessoas descumprindo as medidas judiciais. Para Derrite, ex-agente da Rota, tropa de elite da Polícia Militar paulista, a saidinha está por trás da reincidência criminal. Estudos apontam que a reincidência criminal no País supera a taxa dos 30%.

“A gente não tem dificuldade de prender quadrilhas, criminosos. A gente tem dificuldade com a reincidência criminal”, afirmou Derrite, em entrevista coletiva em dezembro. “É normal um país prender 14 vezes o mesmo indivíduo pelo mesmo crime grave? É normal prender pela 30ª vez um indivíduo com fuzil?”

A pauta do fim das saidinhas tem sido defendida pela oposição governista, ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro. No Senado, a relatoria coube ao filho do ex-presidente, Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Para Bruno Shimizu, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a aprovação do PL pode causar um colapso no sistema penitenciário nacional e nas varas de execução penal. “É verdade que o projeto prevê como exceção a possibilidade de saída temporária para o ensino profissionalizante, mas isso vai ficar apenas como uma carta de intenções, porque menos de 5% da população prisional total tem vaga de trabalho”, diz.

“É um argumento falacioso de que essa restrição poderia estimular o estudo, porque não há vagas, não há professores suficientes para atuar dentro do sistema prisional e muito menos fora dele”, acrescenta ele, que é defensor público.

Publicidade

Na prática, segundo ele, o regime semiaberto e o regime fechado vão se tornar a mesma coisa. “A progressão de regime vai deixar de ter impacto de reinserção paulatina do apenado na comunidade”, diz. “O fato de que o comportamento carcerário vai valer muito pouco na execução da pena vai fazer com que haja grande dificuldade para a administração pública gerir as unidades.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.