O município mais violento do Brasil fica em um dos menores Estados do País, o Amapá, e viu seu número de homicídios subir 88,2% em um ano. Segunda maior cidade do Estado, Santana fica a apenas 17 quilômetros da capital, Macapá. Por trás da alta, está um cenário de confronto entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que disputam a rota amazônica do tráfico de cocaína e skunk.
Principal acesso fluvial do Amapá, o município de Santana tem portos que recebem navios e barcos para transporte regional, além de um específico para cargueiros de grande porte com foco em importações e exportações.
Também pesa nessa conta a alta letalidade das polícias amapaenses. Em 2023, a cidade registrou média de 92,9 mortes violentas intencionais para cada grupo de 100 mil habitantes. O índice é quatro vezes maior do que a média nacional (22,8).
Em nota, o governo do Amapá afirmou que primeiros seis meses de 2024 foi registrada uma redução de 32% comparado com o mesmo período no ano passado referente aos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI). Os índices divulgados pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), mostram que, no total, foram 175 vítimas de crimes violentos em 2023, contra 119, neste ano.
“A partir de outubro, quando os resultados das operações começaram a aparecer, verificou-se a redução significativa dos números de ocorrências de CVLI, tendo a atuação efetiva das equipes policiais nas operações Hórus, Paz e Mute, além da apreensão de armas e drogas”, disse o secretário de Segurança Pública em exercício, Marko Scaliso.
É o que mostra o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira, 18. O levantamento também aponta que o Amapá foi a unidade da federação que registrou o maior crescimento de homicídios no País, com alta de 39,8% entre 2022 e 2023 - e isso em um contexto de queda nacional de vítimas.
“Em 2017, houve o apogeu das mortes, principalmente a partir da guerra instaurada a partir da ruptura do PCC com o Comando Vermelho. Em 2023, percebe-se que a dinâmica do crime faz com que a disputa não seja mais generalizada pelo País todo, mas concentrada em municípios estratégicos para o negócio da droga, principalmente, e da arma”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum.
Ele aponta que, muitas vezes, as disputas ocorrem em regiões com portos, aeroportos ou fronteiras, consideradas “grandes ‘hubs’ logísticos de distribuição das mercadorias legais”. “Em Santana, tem o porto, que começou a ser usado pelo crime organizado principalmente para exportar drogas para a Europa e receber mercadorias ilegais, incluindo armas, para alimentar e financiar a cadeia.”
Em meio a isso, a cidade passou a ser palco frequente de disputas, em dinâmica que se sobrepõe inclusive a grandes centros urbanos do Amapá. “A hipótese é que em Santana tem acontecido até maior disputa territorial do que em Macapá”, afirma Thiago Sabino, pesquisador do Instituto Mãe Crioula.
“O Comando Vermelho se uniu com os Amigos para Sempre (APS), que de certa forma é minoria no Estado, mas está em processo de expansão e disputa. E o PCC se juntou com a Família Terror do Amapá, que é a majoritária”, acrescenta o pesquisador.
Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que “trabalha pela articulação da rede de DHPPs (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), para aumentar a capacidade de investigação de homicídios pelas unidades especializadas, com vistas ao aumento da taxa de esclarecimento dos crimes em âmbito nacional.”
Ainda de acordo com a pasta, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) tem reforçado parcerias com os Estados e o Distrito Federal em ações de inteligência e atuado de forma integrada com as polícias Civil, Militar, Federal, Rodoviária Federal e Científica, e em conjunto com os Ministérios Públicos estaduais e Federal no combate ao crime organizado.
“Nesse sentido, (o ministro Ricardo) Lewandowski defende a constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para que a União tenha mais poderes de fazer um planejamento nacional de caráter compulsório para os outros órgãos de segurança, sem prejuízo da competência dos Estados e do Distrito Federal de legislarem sobre o tema. O que se pretende é dar competência à União para elaborar um plano nacional de segurança pública e também um plano acerca do sistema prisional. Hoje, não existem instrumentos legais para fazer isso de forma vinculante aos demais entes federados.”
Especialistas têm apontado também que, na Amazônia, a escalada do tráfico de drogas impulsiona inclusive crimes ambientais, como garimpo e desmatamento. “Não é só droga. Vai minério, diamante, é uma imbricação com as demais modalidades,” afirma Renato Sérgio de Lima.
Nos presídios, onde são recrutados mais membros para as facções, o próprio governo reconhece dificuldades. Em documento no início do ano, o Instituto de Administração Penitenciária do Amapá, sob a gestão Clécio Luís (Solidariedade), admitiu que “enfrenta questões como sobrecarga de funções em coordenações, infraestrutura inadequada e pontos de tensão entre segurança e ressocialização”.
Dados do Censo 2022 mostram que Santana, de 107,6 mil habitantes, tem a população essencialmente jovem, com o grupo entre 20 e 24 anos apresentando a maior barra na pirâmide etária. E cerca de metade da população de Santana tem até 29 anos, justamente a faixa em que são registrados os maiores percentuais de homicídios no País.
IDH de Santana tem melhorado, mas dados gerais ainda são ruins
A cidade amapaense que registrou o maior número de homicídios no ano passado oscila em seus indicadores. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de Santana melhorou nas últimas décadas, mas ainda está abaixo da média nacional.
Atualmente, o IDHM de Santana é de 0,692, ocupando a 2.134º posição entre todos os 5.570 do País. O índice nacional é de 0,766. Os dados são do Atlas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil), e quanto mais próximo de 1, melhor.
Outro estudo, divulgado este mês pelo IPS Brasil, que fez um ranking de todas as cidades do País a partir de 53 indicadores oficiais, coloca a cidade de Santana em patamares ainda piores quando se trata de qualidade de vida. A cidade ficou na posição 3.312, com nota 56,94 em escala que vai até 100.
Entre os maiores problemas a serem enfrentados pelo município, segundo o levantamento, estão as questões voltadas às necessidades humanas básicas. Dezesseis dos 17 indicadores que compõem essa análise foram considerados abaixo do ideal ou em posição de atenção. E um dos que receberam pior avaliação é justamente o que trata de homicídios.
Além dos recursos advindos da operação dos portos, Santana também registra atividade rural, sobretudo com a criação de gado, suínos e búfalos. A pesca, a extração de madeira e o comércio de açaí também contribuem para a economia local. A região também tem a Ilha de Santana, que costuma receber turistas aos finais de semana.
Pelo País, facções sequestram contratos públicos e miram novos lucros
Conforme o Estadão tem mostrado, na série de reportagens (In)Segurança Pública, as facções criminosas têm se fortalecido no País, com sequestro de contratos do poder público, diversificação das estratégias para lavar dinheiro e busca de novos caminhos para a droga.
“O Brasil tem tudo para se transformar num narcoestado”, afirmou Wálter Maierovitch em entrevista ao Estadão em abril. Para ele, ao se infiltrar em estruturas do Estado – como foi o caso dos contratos de ônibus em São Paulo – o crime organizado ganha perfil de máfia no Brasil.
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