“Tenho um lema que não me interessa a pessoa ser preta ou branca, mas se passar por cima do meu filho, da minha mãe ou dos meus orixás, eu vou passar também”, diz a microempresária e ialorixá carioca Preta Lagbara, de 42 anos. Desde o final de outubro, ela tem vivido o que chama de “bizarrice sem tamanho” quando descobriu que um homem desconhecido por ela tatuou sem autorização o rosto do seu filho Ayo, de 4 anos, em um evento de concurso.
A tatuagem em questão foi desenhada com base em uma imagem de Ayo feita pelo soteropolitano Ronald Santos Cruz. Preta descobriu que o rosto do filho foi parar no corpo de um homem branco desconhecido ao ser alertada por amigos, que viram a publicação nas redes do tatuador Neto Coutinho. O trabalho lhe rendeu um prêmio na categoria de “Retrato” da Tattoo Week, um dos principais eventos desse nicho no País.
“Não estou questionando o talento dele, mas não se pega uma foto de criança aleatoriamente e tatua no corpo de alguém que não tem vínculo afetivo ou emocional com ela”, aponta. Segundo ela, a foto original já havia viralizado online e sido repostada em sites internacionais até chegar ao Pinterest, uma rede social com “imagens inspiradoras”, onde teria sido encontrado por Coutinho, com quem tem tentado falar há um mês.
“Eu entrei em contato por mensagem direta, mas ele não respondeu. Comentei na página e ele apagou. Outros filhos meus do terreiro fizeram o mesmo e não conseguiram. Só depois que o caso começou a repercutir, ele conseguiu me responder”, diz Preta. “Só fui ouvida quando fiz barulho.”
A publicação de denúncia que Preta fez em suas redes sociais na última segunda-feira, 28, acabou viralizando e sendo compartilhada também por outros ativistas do movimento negro. No dia seguinte, o tatuador postou em seu próprio perfil um comunicado no qual ele se retrata pelo uso da imagem e pede desculpas a ela, aos familiares e ao próprio Ayo.
“Há de se evidenciar que, no caso em apreço, o artista pautou a execução da tatuagem sem o nível de informação necessária (sic), reconhecendo o equívoco cometido, mas - sobretudo - sem qualquer intenção de trazer prejuízo a quem quer que seja”, diz a nota, a qual ainda frisa que Coutinho se identifica como parte da comunidade preta.
Para Preta, entretanto, o tatuador teria “desumanizado” a criança ao usar sua imagem em um desconhecido. “Ele não é filho de chocadeira, tem mãe, pai e família”, disse ela em um vídeo. “Querem apelar para o meu ego dizendo que o Ayo é lindo e eu deveria agradecer pela arte, mas eu sei que ele é bonito, fui eu que pari.”
Com apenas 4 anos, o menino ainda não entende a gravidade de ter seu rosto marcado permanentemente na pele de um desconhecido. “Eu disse o que tinha acontecido e ele ficou parado me olhando, depois disse ‘não pode, não”, conta Preta. “Eu respondi que ‘não pode, porque você é da mamãe’, mas quando ele me viu chateada, disse pra eu não me preocupar: ‘Vai sair no banho quando lavar’”, relata ela, emocionada.
Ao Estadão, a organização da Tattoo Week explicou que nenhum dos premiados pelo evento recebem remuneração financeira, apenas um troféu, certificado e outros brindes de patrocinadores. Para o advogado Djeff Amadeus, diretor do Instituto de Defesa da População Negra e representante de Preta, o “dano moral” sofrido por ela “independe do valor econômico” que o tatuador tenha lucrado.
“Se você ganha seguidores em redes sociais, está ganhando dinheiro, mesmo que de forma indireta. Essa desculpa não cola”, comenta o advogado. Para ele, o caso ainda levanta outros debates, como direito e uso de imagem sem autorização, racismo por se tratar da figura de uma criança negra tatuada em uma pessoa branca e a própria regulamentação da profissão e de como ela é exercida.
Preta, entretanto, diz que quer apenas encontrar a pessoa que foi tatuada com o rosto de seu filho. “Só isso vai me trazer a paz total, porque eu não vou descansar enquanto essa tatuagem não for removida. Eu só quero tirar o rosto do meu filho do corpo de um desconhecido.”
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