‘Sou juíza há 34 anos e nunca vi uma insegurança pública como a de hoje’

Desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, discorda de Lewandowski. Para ela, a responsabilidade não é da polícia, que prende mal, nem da Justiça, que solta muito, mas do Estado

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Foto: Alex Silva/Estadão
Entrevista comIvana DavidDesembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo

Magistrada há 34 anos, a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, discorda “completamente” da ideia de que “a polícia prende mal e o Judiciário é obrigado a soltar”, conforme disse o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, na semana passada. Para ela, a crise da segurança pública atingiu o pior nível das últimas três décadas e o principal responsável é o Estado, que não tem sido capaz de dar respostas efetivas.

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Lewandowski disse que, em muitos casos, a falta de provas ou de um processo bem instruído inviabiliza a permanência dos suspeitos na prisão. A fala motivou reações, como uma convocação articulada pela Bancada da Bala do Congresso.

Após a repercussão negativa, Lewadowski mudou o tom, elogiou a polícia e disse que sua fala foi tirada do contexto.

Desde que as audiências de custódia foram implementadas no País, em 2015, foi realizada 1,7 milhão de análises de prisão desse tipo. Do total, cerca de um milhão de flagrantes, aproximadamente 60% do total, foi convertido em prisão preventiva. Em outros 678, 6 mil casos (39,4%), a liberdade foi concedida.

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O mecanismo foi criado para reduzir o número de prisões arbitrárias e para garantir a integridade física do detido, que deve ser apresentado ao juiz até 24 horas após a prisão em flagrante. Para muitos parlamentares e policiais, no entanto, as audiências abrem margem para liberar suspeitos prematuramente, com risco de reincidência. Outros especialistas dizem que as solturas revelam problemas e até abusos por parte da polícia na captura de suspeitos.

“Essa necessidade de botar a culpa em alguém, na polícia ou na Justiça, até na imprensa, achar um culpado é uma leitura míope”, disse Ivana David, especialista em teoria da prova no processo penal, em entrevista ao Estadão.

Veja os principais trechos da entrevista:

O ministro Lewandowski, disse que a polícia prende mal e, por isso, o Judiciário é obrigado a soltar. A senhora concorda com o ministro?

Com toda a vênia ao ministro, eu discordo completamente. Não tem erro nenhum. Essa necessidade de colocar a culpa em alguém, na Justiça ou na polícia, até na imprensa, achar um culpado, é uma leitura míope. O juiz não está lá para bater um carimbo. Ele tem de avaliar aquela situação específica, cada caso é um caso. Eu julgo casos milionários de lavagem de dinheiro e também do garoto preso com dois cigarros de maconha. E há muitas coisas a serem levadas em conta: se estão presentes os requisitos do flagrante, se há benesses na lei para aquele caso. Além disso, somos um País de 200 milhões de habitantes, profundamente desigual, com 8,5 milhões de km², em que cada Estado tem uma realidade diferente. Não dá para colocar tudo no mesmo balaio. Colocar a culpa na polícia é pior ainda. Vejo essa declaração com preocupação, acho injusta com a polícia. Enquanto nós matamos um leão por dia, a polícia mata um leão por hora.

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E botar a culpa no Judiciário?

Bom, não dá para dizer que o juiz é despreparado. Ele passa por um concurso longo, difícil. Precisamos ter leis, não podemos, ou não devemos, nos afastar da lei. Eu posso determinar que um preso não seja solto e outro colega achar que deve. Ele está errado? Não necessariamente, ele tem essa competência. Por exemplo, a lei diz que a prisão em flagrante não deve ser transformada em preventiva no caso de mãe com filhos menores de 12 anos, que ela pode responder em regime aberto. Um homem preso em flagrante pelo mesmo crime provavelmente vai ficar preso. Tem mulheres que trabalham para facções criminosas porque são vítimas de chantagem, porque seus filhos, que estão na prisão, são ameaçados de morte. Outra: não dá para acabar com as audiências de custódia, como muitos sugerem. O Brasil é signatário de tratados internacionais.

Médica chutada e mordida em assalto em SP. Reprodução/TV Globo Foto: Reprodução/TV Globo

Mas não dá para restringir?

Ok, vamos restringir. Então todo traficante deve ficar preso. Mas de que tráfico estamos falando? Em que circunstâncias? Eu, como juíza, posso entender que o cara preso com 50 gramas não é traficante, é usuário, se eu constatar, por exemplo, que ele é dependente químico e já esteve internado várias vezes por isso. Entende? Tenho certeza de que qualquer pessoa que for presa ou julgada nesse País quer ter um juiz que entenda sua situação específica, e não julgue de forma genérica. Temos de pensar no que é bom para a sociedade, não no que nós achamos bom.

A senhora falou que a discussão sobre a culpa do Judiciário e da polícia é uma leitura míope. Por quê?

É uma leitura míope porque olha só para um lado. Porque estão falando dos que são soltos “por erro do juiz ou da polícia”, mas também poderíamos falar dos muitos que estão encarcerados e não deveriam pelo mesmo motivo. Parece que ninguém se interessa muito pelos que estão presos.

Como a senhora avalia a situação da segurança pública no País?

Sou juíza há 34 anos e digo que nunca vi uma insegurança pública como a que estamos vivendo hoje. Porque, por trás do roubo do celular na Paulista, está uma organização criminosa. Não é um crime isolado. Como costumo contar para os meus alunos, na época em que eu era juíza no interior, o sujeito pulava o muro de uma casa para roubar o botijão de gás. Isso não existe mais. São organizações criminosas estruturadas por trás do trabalho escravo, do tráfico de drogas, da prostituição, do roubo. Organizações que lotearam territórios, e que usam essa mão de obra barata, abduzem esses garotos. Não dá para olhar a violência de forma pontual. Precisamos de políticas públicas para evitar que esses jovens sejam abduzidos.

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Mas a polícia também pode melhorar?

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Sim, claro. A polícia tem de ter estrutura melhor. Tenho esse privilégio de conversar com as polícias de todo o País. Todas têm problemas. Arma e viatura é bom para o marketing, mas polícia não é só isso. Precisamos de tecnologia, de inteligência, de policiais preparados, capacitados. Toda a investigação hoje depende de tecnologia. Os policiais têm problemas psicológicos, taxas recordes de suicídio, vivem a um passo do crime. Eles precisam de bom salário, apoio. Precisamos fortalecer o sistema de segurança.

E como combater essas grandes organizações criminosas?

Como se faz em todo lugar do mundo: com inteligência, tecnologia, coragem de cortar na carne, de assumir que os governos são corruptos, de mandar embora quem está envolvido. É como se faz com máfias e cartéis nos Estados Unidos, no Japão, na Itália. A segurança pública é um dever do Estado, tem de ser cumprida. O Estado que se reinvente, que vá procurar novas formas de combate. Não dá é para dizer que não faz segurança pública por conta da geografia, por conta dos outros, tem de arrumar formas, tirando dinheiro do crime, tirando arma, enfim. Essa é a missão dos governantes, para isso foram eleitos. É difícil? Claro que é. Se fosse fácil não era pauta todo dia.