A descriminalização do porte de drogas para uso pessoal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), cujo julgamento está previsto para ser retomado nesta quinta-feira, 1º, pode gerar efeitos diferentes nos Estados. Em Amazonas, Roraima e Espírito Santo, mais da metade dos processados por tráfico de maconha estavam com até 25 gramas da droga e podem ser impactados com uma decisão da Corte, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É um patamar acima ao de outras regiões.
No início do julgamento, em 2015, o ministro Luís Roberto Barroso sugeriu o limite de 25 gramas para definir o porte pessoal de maconha, com base em legislação de Portugal. Se essa for a “régua” adotada, 31% dos processos por tráfico de drogas em que houve apreensão de cannabis poderiam em tese ser reclassificados como porte pessoal no País. Ao mesmo tempo, 27% dos condenados nesses mesmos termos poderiam ter os julgamentos revistos.
A Corte analisa recurso extraordinário da Defensoria Pública de São Paulo que contesta a punição prevista especificamente para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”. O órgão parte de um condenado por portar 3 gramas de maconha.
Segundo o artigo 28 da Lei de Drogas, as penas variam entre “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Até aqui, além de Barroso, dois ministros já votaram e, embora com divergências pontuais, foram a favor de descriminalizar o porte: Gilmar Mendes, hoje relator do caso, e Edson Fachin.
Especialistas divergem sobre o tema. Uma parcela acredita que definir critérios pode evitar condenações injustas e reduzir a subjetividade, incluindo o risco de viés racial, nas análises da polícia e do Judiciário sobre casos de apreensões de drogas e diminuir o encarceramento. Já outras correntes veem fortalecimento do alcance de facções criminosas com a descriminalização e possibilidade de aumento do número de usuários.
Conforme o estudo do Ipea, a mediana da quantidade de maconha apreendida com cada processado por traficar cannabis no País é de 85 gramas. Isso significa que, em ao menos metade dos casos, o carregamento encontrado com o réu foi menor ou igual a essa marca. “Há predominância de pequenas quantidades”, diz a pesquisadora do Ipea Milena Soares, uma das coordenadoras da pesquisa.
Em 58,7% dos processos envolvendo maconha, a quantidade apreendida é menor que 150 gramas, conforme a pesquisa. Os Estados com as menores medianas são Amazonas (20 g), Roraima (23 g), Espírito Santo (23 g) e Piauí (26 g). Em São Paulo, foi de 54 g, também abaixo da média nacional.
Na outra ponta, os Estados com maior mediana são Mato Grosso do Sul (1,1 kg), Rio (147 g), Pernambuco (112 g) e Santa Catarina (111 g). As causas disso, segundo Milena, ainda têm de ser melhor investigadas, mas a ideia é que a pesquisa embase o aprofundamento de discussões. “São achados para qualificar o debate e as decisões públicas sobre o assunto.”
Houve apreensão de cocaína em 70,2% dos processos por tráfico de drogas analisados. De maconha, em 67,1% das ocorrências. São as duas substâncias mais comuns nas implicações judiciais por tráfico.
As unidades federativas com as maiores medianas de cocaína apreendida por réu são Rio (96 g), Alagoas (60 g), Roraima (44 g) e São Paulo (42 g). Com menores quantidades, estão Maranhão (5 g), Distrito Federal (6 g) e Goiás (7 g).
Imprecisão das informações é ponto de atenção, aponta estudo
Um ponto de atenção destacado pelos pesquisadores é a imprecisão das informações sobre as drogas nas denúncias, laudos e sentenças. “Nem sempre a gente encontrava a informação da massa em gramas, em métrica padrão”, diz Milena. Em alguns casos, havia apenas a descrição de “tijolos” ou “papelotes” de droga, por exemplo. Em outras, não foi especificado se a substância foi pesada com ou sem a embalagem.
“Essa diferença é relevante para que se possa melhorar a qualidade da informação no processo, ter mais objetividade na mensuração e avançar nesse debate sobre critérios objetivos”, afirma ela. O estudo quantitativo analisou processos de 5,1 mil réus com indiciamento (na fase policial), denúncia e/ou sentença por crimes de tráfico de drogas, com decisão terminativa no 1º semestre de 2019. Os pesquisadores apresentam duas recomendações principais diante dos achados:
- Propõem a agentes públicos criar parâmetros objetivos para definir quantidades de drogas compatíveis com porte para uso pessoal – justamente o que está em debate no STF;
- Sugerem criar um protocolo, na hora da elaboração dos laudos periciais preliminares e definitivos, para definir padrões de pesagem, indicação obrigatória de massa líquida (sem embalagem) das substâncias periciadas e descrição dos métodos para aferir a natureza das substâncias.
Com base nas informações levantadas, os pesquisadores do Ipea se valeram de uma nota técnica de 2015 do Instituto Igarapé que, com base em outros estudos e referências internacionais, definiu três cenários para a descriminalização do porte de drogas. Um primeiro, mais conservador, define que o limite para maconha é de 25 g e para cocaína, de 10 g. O segundo estipula limiares de 40 g e 12 g, respectivamente. Já um último cenário, mais liberal, trabalha com margens de 100 g e 15 g.
A pesquisa concluiu que, se adotados critérios nessas faixas para presunção de porte para uso, haveria a possibilidade que, aproximadamente, entre 30% e 50% das apreensões de maconha e entre 30% e 40% das apreensões de cocaína fossem reclassificadas como porte para consumo pessoal. Em média, a taxa de condenação por tráfico (art. 33 da Lei de Drogas) é de aproximadamente 72% no País.
Quais são os argumentos a favor? Quais são os argumentos contrários?
Para o procurador do Ministério Público de São Paulo Márcio Sergio Christino, é contraditório discutir a descriminalização do porte sem tratar a regulação de mercado. “A simples liberação do consumo de drogas, por um direito à intimidade, traz consequências danosas para a sociedade”, diz. “Principalmente na questão do crime organizado, já que vai se criar uma demanda para a qual há necessidade de fornecimento e de se incrementar o mercado. Não há compra sem venda.”
Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), tem visão diferente. Segundo ele, julgar a descriminalização do porte de drogas passa principalmente pela discussão do racismo estrutural nas atividades policial e judiciária. “O olhar policial é muito diferente quando se trata de um possível suspeito que é branco, e que transita por bairro nobre, e um suspeito que é negro e transita pela periferia.”
Pesquisadora do Instituto Igarapé, Marina Alkmim afirma que a subjetividade dos critérios adotados pela lei gera impactos. “Por não prever parâmetros objetivos de quantificação que diferenciam o consumo do tráfico, injustiças continuam sendo perpetuadas”, diz.
Segundo ela, Portugal fixa valores de referência baixos para a diferenciar consumo e tráfico tanto para cannabis, como para ecstasy, heroína e cocaína. Ela afirma que os Estados Unidos, por sua vez, têm referências para porte significativamente mais altos em alguns Estados, como no Maine, que permite portar até 2,5 ‘onças’ (equivalente a 70 g de maconha), Nova Iorque, que permite até 3 ‘onças’ (85 g), e Nova Jersey, que permite até 6 ‘onças’ (170 g).
Alguns países, ainda conforme Marina, adotam critérios objetivos de quantidade só para a maconha, outros contemplam mais drogas, como cocaína, heroína e opiáceos. “Colômbia, Peru e México adotam parâmetros de quantidades objetivas para outras substâncias”, diz. O limite para porte de cannabis nesses locais varia de 5 g a 20 g. Já para a cocaína, de 0,5 g a 5 g. “Nas Américas, 19 países adotam critérios de quantidade para distinguir consumo de tráfico.”
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