Preso em Itaí, no interior de São Paulo, um bengalês apontado pela Polícia Federal como o “maior contrabandista de pessoas do mundo” está no meio de uma disputa judicial que envolve dois países. Saifullah Al Mamun foi detido em 2019 em operação internacional contra uma rede de coiotes que levava grupos de migrantes até a fronteira americana. Os Estados Unidos pedem sua extradição para que ele possa ser julgado lá. A decisão caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em outubro do ano passado, o ministro Luiz Fux concedeu a Al Mamun progressão ao regime semiaberto, com direito a saídas temporárias. A defesa, contrária à extradição, nega o crime de tráfico de pessoas, diz que os processos no Brasil e no exterior são relacionados apenas ao favorecimento da imigração ilegal e pede sua ida para o regime aberto, por ele ter deficiência física.
O bengalês foi preso há cinco anos no Brás, região central de São Paulo, durante as operações Estação Brás e Bengal Tiger, que ocorreram em 20 países e investigavam o envio de estrangeiros aos Estados Unidos. No Brasil, ele foi condenado em dois processos a 22 anos e 2 meses de prisão, por promoção de migração ilegal e lavagem de dinheiro.
A Justiça americana quer sua extradição para que ele responda a ao menos oito processos de remessa ilegal ou contrabando de imigrantes e conspiração, crimes graves naquele país. As ações tramitam no Texas, que aplica punições severas, como prisão perpétua e pena de morte.
Segundo a PF, de 2016 a 2019 a rede criminosa de coiotes movimentou mais de R$ 10 milhões para transferir ilegalmente para os Estados Unidos cerca de 200 pessoas. A investigação apontou uma rota clandestina de migração com origem em países como Bangladesh, Índia, Nepal, Afeganistão e Paquistão. O grupo usava serviço de advogados brasileiros para pedir refúgio no Brasil e fornecia documentos de viagem falsos, incluindo passaportes, e vistos.
Conforme o Estadão mostrou, a escalada de pedidos de refúgio dessas nações asiáticas no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo, fez o Ministério da Justiça e da Segurança Pública apertar em agosto as regras para a concessão desse status.
A investigação que mirou Al Mamun mostrou que os migrantes eram levados ao Brás, região central de São Paulo, e tinham de pagar R$ 72 mil à quadrilha – R$ 25 mil na chegada e R$ 47 mil para a viagem até os Estados Unidos. No Brás, ficavam sob cárcere privado, sofrendo maus-tratos e agressões.
Depois, seguiam para Rio Branco, de onde iam de táxi ao Peru e encaravam uma jornada de risco, humilhações e privações, passando por Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Honduras, Nicarágua, Guatemala e México, até a fronteira com os Estados Unidos. Na travessia da Selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, eram obrigados a caminhar até dez dias a pé. A floresta é uma rota estratégica pela baixa fiscalização da polícia e por ser controlada por cartéis do narcotráfico. Muitos migrantes se ferem e até morrem no trajeto.
Oito bengaleses foram sequestrados por cartéis na fronteira de México e Estados Unidos. O grupo foi resgatado no cativeiro após a polícia ouvir gritos, mas acabou enviado para deportação. Relatos deles e de outros migrantes que chegaram ao território americano foram usados como base para os processos na Justiça do país. Os depoimentos sustentam também acusações contra Al Mamun no Brasil.
A PF obteve inclusive imagens de vídeos dos grupos em meio à floresta da Colômbia e já no México em celulares e no computador do bengalês, indicando que ele acompanhava a jornada das vítimas.
Pedido de extradição para os EUA
O STF já decidiu que o pedido de extradição pelo governo dos Estados Unidos atende aos requisitos da Lei 13.445/2017, do Tratado de Extradição e da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.
Mas, no mesmo acórdão, de 2021, os ministros condicionaram a entrega do estrangeiro à conclusão do processo penal na Justiça brasileira ou o cumprimento da pena.
A Justiça dos Estados Unidos pediu a antecipação da extradição, alegando que, como o réu está preso, pode ir para uma prisão americana e lá cumprir a pena imposta aqui, enquanto responde aos processos naquele país.
Em outubro do ano passado, Fux suspendeu a prisão preventiva vinculada ao processo de extradição, considerando que os crimes atribuídos a Al Mamun teriam sido praticados sem violência ou grave ameaça.
Com a decisão monocrática, o detento progrediu para o semiaberto. Fux levou em conta que o bengalês é casado com uma brasileira, tem uma filha de 6 anos e anda de muletas, além de necessitar de remédios, acompanhamento urológico e fisioterapia.
Al Mamun adquiriu a deficiência física após ser atingido em 2011 por um tiro na coluna durante um roubo em São Paulo.
A defesa diz que o detento pode ser ouvido pela Justiça dos Estados Unidos por carta precatória, como já aconteceu em ao menos um processo. No último dia 11, o processo em que se pede para antecipar a extradição foi encaminhado ao ministro relator, Nunes Marques, e aguarda decisão.
Nova condenação
Em sentença no último 29 de julho, o bengalês teve nova condenação pela Justiça Federal de São Paulo, a 7 anos e meio de prisão por lavagem de dinheiro e fraudes para transações cambiais. Conforme a denúncia, só o bengalês, que declarava renda de R$ 8 mil por mês, teria movimentado R$ 5,1 milhões em cinco anos.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a investigação mostrou que o réu e seus cúmplices lavaram dinheiro, diluindo o montante em pequenas quantias depositadas em várias contas bancárias.
A pedido do MPF, o bengalês já havia sido condenado por organização criminosa e promoção de migração ilegal à pena de reclusão de 14 anos e 8 meses. Nos dois processos houve recurso da defesa.
Defesa pede regime aberto
A advogada Cleidiany Kelly Cavalcante, que compartilha a defesa do bengalês com o advogado Fernando Neto, disse que já recorreu da condenação por lavagem de dinheiro, que é decorrente do processo principal pelo qual ele foi condenado no Brasil por promoção de imigração ilegal.
“Importante salientar que ele não foi condenado aqui por tráfico de pessoas, que é um crime diferente. Já fizemos recurso de apelação das duas condenações, por isso não houve trânsito em julgado dessas condenações no Brasil”, afirmou.
Sobre a extradição, ela disse que houve decisão no sentido de que o bengalês fosse extraditado para os Estados Unidos após o cumprimento da pena no Brasil, ou com liberação antecipada. “Isso não houve até o momento, mas o juízo das execuções se manifestou no sentido de concordar com essa liberação antecipada, o que a defesa repudia, pois as vias recursais não foram esgotadas.”
Segundo ela, Al Mamun preenche desde o início do ano os requisitos para progredir para o regime aberto (cumprir o resto da pena fora da prisão), mas o juízo de execuções exigiu exame psicológico. Por ter deficiência física, diz a advogada, o cliente demanda cuidados especiais que o presídio não oferece.
“Até agora, ele conseguiu apenas uma saída temporária, ainda assim com tornozeleira eletrônica. Nessa saída, ligou para a família e soube que seu pai morreu em Bangladesh”, disse.
Ela destacou que o bengalês não foi condenado por crime hediondo, mas por crime comum. “Ele é primário, com bons antecedentes e não tem outras condutas criminosas além dos processos pelos quais respondeu. Tem bom comportamento carcerário.”
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