Não parece ter fim a última viagem do que sobrou do que já foi o maior navio da Marinha brasileira. Proibida de atracar por onde passa, a sucata do porta-aviões NAe São Paulo (A-12) não deixou de navegar nenhum momento desde que deixou o Rio de Janeiro, em 4 de agosto do ano passado, rumo à Turquia para desmonte e reciclagem. A embarcação desativada cruzou o oceano a reboque, teve sua atracação rejeitada pelos turcos e, na volta, também pelos portos brasileiros.
Não são muitos os cais que têm capacidade de receber o gigante de 266 metros de comprimento, mas o principal motivo da negativa é outro: a ameaça de naufrágio sob as suspeitas de carregar uma quantidade perigosa de materiais tóxicos, como o cancerígeno amianto. Agora o aposentado navio de guerra vaga exilado em alto-mar. Seu casco traz uma avaria que pode provocar um dano ambiental ainda incalculável caso naufrague, proposital ou acidentalmente.
Após três meses de tentativas frustradas de entrar no Porto de Suape, em Pernambuco, o ex-porta-aviões foi afastado para região de maior profundidade e proibido pela Marinha, no último dia 20, de se reaproximar das águas interiores ou terminais portuários do Brasil.
A determinação se baseia no “elevado risco que representa, com possibilidade de encalhe, afundamento ou interdição do canal de acesso a porto nacional, com prejuízos de ordem logística, operacional e econômica ao Estado brasileiro”, segundo comunicado da Autoridade Marítima Brasileira (AMB). Anteriormente, as restrições eram impostas apenas pelos portos, que negavam a atracação.
O casco da embarcação retornou da Turquia em outubro com uma série de avarias, corrosões e outras não conformidades. A Marinha corroborou que constatou “severa degradação das condições de flutuabilidade e estabilidade” ao realizar inspeção pericial no casco.
Os danos foram observados pela primeira vez na volta ao Brasil, já nas imediações de Suape, e constam no relatório produzido em outubro pela empresa de engenharia AWS Service, contratada pela transportadora e atual proprietária do NAe São Paulo, a estrangeira MSK Maritime Services & Trading.
O documento diz que as avarias estão provavelmente relacionadas à interação com as ondas, o sal e o vento durante os 72 dias de navegação em mar aberto entre o Brasil e a Turquia. Ainda que recomendasse o reparo do casco, o laudo afirmava que, até então, não havia comprometimento iminente da flutuabilidade.
Mas é possível que as condições tenham se deteriorado ainda mais no tempo em que ficou no litoral pernambucano, reconhece o advogado Zilan Costa e Silva, especialista em Direito Marítimo e representante da MSK no Brasil. “Foram mais de cem dias com o casco navegando sem parar”, disse ao Estadão.
Afinal, o navio tem ou não material tóxico?
Tóxico, o amianto é, sim, um dos componentes presentes no equipamento, que é antigo. O Navio Aeródromo São Paulo começou a ser fabricado em 1957 na França e serviu à frota francesa até os anos 2000, quando foi comprado pelo Brasil. Foi descomissionado pela Marinha Brasileira em 2020 e vendido em 2021 ao estaleiro turco Sök Denizcilik Tic Sti.
Na época em que o porta-aviões foi montado, o amianto ainda não era reconhecido como substância cancerígena pelos organismos de saúde e seu uso na construção era disseminado, inclusive na indústria naval. O material só foi proibido no Brasil em 2017, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
A AMB reforçou, porém, que a embarcação passou por procedimento de retirada de 55 toneladas de amianto dos compartimentos da propulsão, catapulta, máquinas-auxiliares e diesel geradores na década de 1990.
Oficialmente, a sucata do NAe São Paulo tem hoje 9,6 toneladas de amianto, além de 644,7 toneladas de metais pesados em tinta, 3,4 toneladas de substâncias destruidoras da camada de ozônio e 10 mil lâmpadas fluorescentes com mercúrio. É o que diz o Inventário de Materiais Perigosos (Inventory of Hazardous Materials, IHM), documento encomendado pela Sök e elaborado pela companhia norueguesa Grieg Green ao qual o Estadão teve acesso.
Qual o nível de risco?
A apresentação do IHM auditado por testes de laboratório credenciado e aprovado por sociedade classificadora independente com base nas Resoluções da Organização Marítima Internacional (IMO), era uma exigência do edital de licitação do navio.
A embarcação partiu para a Turquia, afirmou a Marinha do Brasil, após consentimento dos dois países envolvidos e “em perfeita observância às solicitações do Ibama e do correspondente órgão ambiental” turco.
Ou seja, ambos os governos teriam concordado com a exportação e a importação do ativo cientes da presença dessas quantidades de materiais potencialmente perigosos.
Tais componentes “não oferecem riscos diretos ao meio ambiente, a menos que a embarcação afunde”, garantiu no último dia 19, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que é a autoridade brasileira responsável por fazer valer a Convenção de Basileia, regulamentação internacional sobre transporte de resíduos.
O Ibama afirmou que o amianto presente nas placas de isolamento térmico no casco da embarcação não está exposto e nem é manipulado. A contaminação só aconteceria em um eventual afundamento, conforme a estrutura fosse se desgastando e as substâncias entrassem em contato com a vida marinha.
“Da mesma maneira, as tintas usadas na estrutura não oferecem risco enquanto o ex-navio permanecer na superfície. Essas substâncias receberão tratamento adequado caso a embarcação seja encaminhada a um país membro da Convenção de Basileia”, defendeu.
Isso porque, por serem partes indissociáveis da estrutura, os materiais só poderiam ser retirados no processo de desmantelagem e reciclagem. Atualmente, não há instalação no Brasil que realize o procedimento.
“Exportar o ex-NAe para um país com estaleiro credenciado junto à Convenção de Basileia, a fim de realizar reciclagem segura para o meio ambiente, é a medida correta para atender a padrões internacionais de destinação de resíduos dessa natureza”, reiterou o Ibama em nota.
Questionado pela reportagem se as avarias na placa oferecem ou podem oferecer perigo ambiental com o casco ainda em flutuação, o instituto respondeu que “não dispõe de informações suficientes para essa análise.”
E por que os portos se negaram a receber o navio?
A Turquia deu para trás no acordo, no ano passado, após ONGs e entidades ambientalistas levantarem dúvidas sobre a veracidade desses dados e questionarem a legalidade da operação. A acusação é de que os números não refletiriam a verdade.
A lógica por trás é de que o navio francês da mesma classe que o São Paulo, o Clemenceau I, tinha um volume muito superior de substâncias tóxicas quando foi desmantelado: “pelo menos 600 toneladas de amianto”, de acordo com as organizações.
“Comparando o inventário do São Paulo com o que a empresa Bureau Veritas fez para o Clemenceau, não só há uma grande discrepância em termos de materiais perigosos identificados como também em termos de compartimentos e tanques amostrados. No São Paulo, 12% dos compartimentos foram amostrados, ante os 82% dos compartimentos do Clemenceau”, afirmou a Shipbreaking Platform, ONG que trabalha contra a prática de demolição naval e pela reciclagem verde.
Gerente de Projetos da equipe técnica do Grieg Green, Andres M. Justad teria admitido que, com a escassez de meios de acesso e dados, a empresa pode ter “facilmente subestimado a magnitude do volume de amianto”. A denúncia foi feita em carta aberta destinada ao Ibama por Jim Puckett, diretor executivo da Basel Action Network, organização que combate a exportação de resíduos tóxicos para países em desenvolvimento.
O peso da decisão internacional mais a atuação local de ambientalistas colaboraram para que os portos brasileiros também fechassem suas portas para o ex-navio. Todos os estaleiros que a MSK procurou teriam rejeitado o atracamento. “Ninguém quis nos receber”, contou o advogado Costa e Silva.
Na capital pernambucana, organizações da sociedade civil fizeram uma manifestação em frente à Capitania dos Portos, no último 15 de novembro, contrária ao atracamento do casco. “Os ambientalistas começaram a dialogar e somar forças, não só aqui, mas também fora do Estado, para que as autoridades pudessem entender o perigo e agir conforme as normas ambientais”, relembrou Alice Gambino, co-fundadora do Movimento Amazônia na Rua Recife, um dos grupos presentes na ocasião.
De quem é a responsabilidade do navio?
Depois da negativa dos portos nacionais, a Marinha do Brasil tomou para si novamente, no último dia 20, as operações que envolvem a embarcação, depois de, segundo nota, a proprietária descumprir a ordem de realizar “as providências necessárias para a manutenção do casco em segurança, em área marítima indicada, situada a 24 milhas náuticas (cerca de 46 km) da costa brasileira, fora do Mar Territorial”.
Com isso, a embarcação contratada pela MSK para fazer o reboque foi substituída pelo Navio de Apoio Oceânico Purus, da Marinha. A troca ocorreu a 315 quilômetros (ou 170 milhas náuticas) da costa, “área marítima considerada segura, dadas as atuais condições de severa degradação em que o casco se encontra”, falou a AMB.
O porta-aviões havia deixado de ser propriedade da Marinha em 21 de abril de 2021, quando foi desativado e posto a leilão para a iniciativa privada – mas continua dando dores de cabeça à União.
A empresa que arrematou a embarcação no ano retrasado por R$ 10,5 milhões foi o estaleiro turco Sök Denizcilik Tic Sti, certificado pela União Europeia para a realização de reciclagem de navios. Em dezembro de 2022, no entanto, a propriedade do ativo passou para a transportadora MSK Maritime Services & Trading, que rebocou o NAe São Paulo do Brasil até a Europa, e de volta ao Brasil. “Por questões comerciais, se fez essa transação”, explicou o advogado.
Mas, agora, diante do imbróglio, ninguém aparenta querer assumir a responsabilidade integral pelo gigante. A Marinha Brasileira não deixou de frisar que a compradora segue responsável pelo bem; e a MSK, por sua vez, diz renunciar à propriedade do casco.
O tempo navegando sem rumo teria causado para a empresa prejuízos inicialmente calculados em R$ 5 milhões, mas que podem chegar a R$ 10 milhões, estimou Costa e Silva. “Nós ficamos solicitando, trabalhando, tentando encontrar soluções até o momento em que isso se tornou impossível de continuar”, falou.
Há solução para o imbróglio?
Um impasse torna difícil prever qual será a solução para o imbróglio. O casco não poderá entrar na Turquia nem atracar nos portos do Brasil do jeito que está, danificado e impondo ameaça ambiental. Mas os consertos exigidos têm de ser feitos com a embarcação atracada, confirmaram à reportagem o Ibama e a MSK.
“Os reparos devem ser realizados em estaleiro nacional que tenha capacidade técnica e operacional”, comentou o instituto nacional. “O Ibama não detém competência para autorizar ou desautorizar a atracação, mas determinou por notificação que a empresa apresentasse toda a documentação necessária para atracação em estaleiro brasileiro. Essa documentação também foi exigida pela Marinha e inclui seguro, contrato com o estaleiro e plano de reparos. A empresa não apresentou esses documentos ao Ibama”, apontou.
Já a MSK disse que não fez o conserto por falta de local. “O reparo só poderia ser feito em águas internas e em lugar tranquilo. No meio do mar, não havia segurança para a equipe. A gente não ia colocar pessoas em risco”, afirmou o representante legal.
Puxando a estrutura a reboque, a Marinha não respondeu o que pretende fazer com ela a partir de agora. Paira uma interrogação - oceânica - sobre o destino do velho navio de guerra.
Uma nova empresa entrou no jogo nesta semana. A saudita Sela Trading Holding Company informou que ofereceu à Marinha brasileira, nessa segunda-feira, 30, R$ 30 milhões pelo ex-navio, praticamente o triplo da cifra pela qual foi arrematado. A ideia da compra seria de levar a embarcação para um estaleiro da companhia, localizado em um país da Europa, disse o advogado representante Alex Christo Bahov ao Estadão. De acordo com ele, no entanto, a Marinha só acusou o recebimento da proposta e não deu nenhuma resposta até a noite dessa terça-feira, 31.
Já o Ibama disse, na noite dessa terça-feira, 31, estar buscando informações mais detalhadas sobre o local previsto para um possível afundamento do ex-navio “com vistas a eventual mitigação, reparação e salvaguarda do meio ambiente brasileiro”.
Mesmo assim, o órgão voltou a defender que considera a reciclagem verde em estaleiro credenciado pela União Europeia a melhor destinação ambiental para ex-navios. “Equipe técnica do instituto estima que a liberação de materiais poluentes contidos na estrutura poderia causar distúrbio na capacidade filtrante e dificuldade de crescimento em organismos aquáticos; o impacto físico sobre o fundo do oceano provocaria a morte de espécies e deterioração de ecossistemas; CFCs e HCFCs usados na insulação de salas contribuiriam, a partir da corrosão das paredes, para a degradação da camada de ozônio; a carcaça poderia atrair espécies invasoras prejudiciais para a biodiversidade nativa; e os microplásticos e metais pesados presentes em tintas da embarcação poderiam se tornar protagonistas de uma bioacumulação indesejável em organismos aquáticos. Como agravante, todos os impactos previstos poderiam ocorrer em hotspots de biodiversidade, fundamentais para a vida marinha”, listou.
O instituto ainda recomendou que perguntas relacionadas a detalhes como data e local de um eventual afundamento sejam direcionadas à Marinha do Brasil. Procurada, a Marinha não respondeu a reportagem para confirmar ou negar sua intenção de afundar a embarcação.
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, para impedir que o porta-aviões seja afundado em águas brasileiras. O órgão requer à Justiça Federal que determine à Marinha a imediata suspensão de qualquer serviço voltado ao afundamento da embarcação, em alto-mar ou próximo ao litoral, sem a apresentação de estudos que comprovem a ausência de risco ambiental.
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