CAETITÉ E LAGOA REAL (BA) - Uma tampa de ferro cobre a boca do poço, no sítio de Osvaldo Antônio de Jesus. A proteção enferrujada tem um furo no meio. Abaixo dela, um reservatório com 90 metros de profundidade está cheio d’água. Osvaldo ergue a tampa e aponta o líquido, um bem precioso para quem vive por esses cantos de Lagoa Real, no sertão da Bahia. Por cerca de um ano, foi esse o poço que garantiu boa parte do consumo diário de sua família. Há poucas semanas, porém, nenhuma gota pôde mais ser retirada dali. Sua água está contaminada por urânio.
A família de Osvaldo é uma das tantas que vivem no entorno da única mina de urânio explorada em toda a América Latina. Há 15 anos, a extração do material radioativo do solo de Caetité, município vizinho de Lagoa Real, na Bahia, é feita pela estatal federal Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Durante todo esse período, a contaminação da água da região por material radioativo sempre foi uma situação negada pela INB. Desta vez, provas coletadas pelo Estado comprovam que há, de fato, contaminação.
Por um mês, a reportagem reuniu documentos oficiais, laudos técnicos e despachos envolvendo as atividades de extração de urânio na região e o monitoramento da água usada pela população. Os documentos atestam que, desde o ano passado, a INB já havia detectado a existência de água com alto teor de urânio em um poço em Lagoa Real. A estatal, no entanto, não comunicou a prefeitura local sobre a situação, ou mesmo a família, o que só viria a ocorrer em maio deste ano, sete meses depois da coleta da água.
Os laudos técnicos da INB, aos quais a reportagem teve acesso, apontam que a estatal realizou duas inspeções na água consumida pela família de Osvaldo Antônio de Jesus. Na primeira coleta, feita em outubro de 2014, encontrou uma quantidade de urânio mais de quatro vezes superior ao limite permitido para o consumo humano, conforme critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Nenhuma informação sobre isso chegou ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), à prefeitura de Lagoa Real ou à família.
Em março deste ano, a INB resolveu fazer uma segunda checagem no poço. Novamente, encontrou material radioativo, dessa vez em quantidade mais de três vezes acima do permitido.
Os resultados desses dois laudos, porém, só foram emitidos em 22 de maio, quando chegaram à prefeitura de Lagoa Real. No dia 25, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente do município foi até o sítio de Osvaldo, informou que seu poço seria “lacrado” e o fez assinar o comunicado. No documento, firmado pelo prefeito Francisco José Cardoso de Freitas e pelo secretário de Meio Ambiente, Willike Fernandes Moreira, a prefeitura diz que o poço “será fechado por ser considerado impróprio para o consumo humano, baseado no boletim de análise da INB”.
Mais uma vez, nada foi comunicado aos órgãos oficiais federal e estadual. Apesar dos resultados, a INB chegou a declarar no início deste ano que, após analisar amostras de águas subterrâneas de Caetité e região “coletadas durante todo o ano de 2014”, foi possível comprovar que “o nível de urânio está abaixo do limite estabelecido como seguro pelo Ministério da Saúde e pelo Conama para o consumo humano”.
À reportagem, a prefeitura de Lagoa Real informou que nem sequer tinha conhecimento de que o poço contaminado existia e culpou a Companhia de Engenharia Hídrica e de Saneamento da Bahia (Cerb) por sua abertura. “Quem abriu o poço foi a Cerb, que não avisou o município. A prefeitura só soube da contaminação quando chegou o relatório da INB”, disse o secretário Willike Moreira. “Notificamos a Cerb sobre a contaminação. Eles não se posicionaram até hoje. Então, todo mundo tem um pouco de culpa nisso.”
Moreira disse que a própria INB tratou de informar a família sobre a água imprópria para o consumo, declaração confirmada pelo proprietário. “No mesmo dia que nos deu o resultado, a empresa foi lá e comunicou a família, deixando ciente do risco que ela estava correndo. Depois nós fomos lá e comunicamos isso a eles também”, afirmou.
Greenpeace. Em 2008, o Greenpeace chegou a denunciar a estatal, sob alegação de que o urânio tinha contaminado a água de dois poços. Cercada de dados, a INB afastou qualquer vestígio de problemas sobre a qualidade da água consumida pela população.
Osvaldo de Jesus, que mora com a mãe, mulher e três filhos no sítio, disse ter “desconfiado” antes mesmo dos testes e, por isso, só a utilizava para lavar roupa e louça, além de matar a sede de galinhas, porcos e bois. “Quando chegou o resultado, fiquei com medo. O povo da INB disse que era pra gente parar de usar, porque estava contaminada. Disse que não era para dar mais nem para os animais nem regar a plantação”, disse. “A gente não bebia dessa água. Usamos a água da chuva que vai para a cisterna e a água do caminhão-pipa, que passa por aqui”, disse.
Nascido na caatinga, ele vive da roça e da rapadura artesanal que faz em um engenho de madeira puxado por bois. Disse não ter medo de ser contaminado pela água radioativa. “Medo do quê? De morrer? De morrer, não. Isso aí é passagem para nós todos, né? Pode ser rico, pode ser pobre, vai mesmo.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.