Em média, dez aviões colidem com aves diariamente em todo o País, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Seis incidentes diários acontecem com aeronaves da aviação comercial. A colisão com pássaros (bird strike) é a segunda maior causa de incidentes aeronáuticos, atrás apenas de falha ou mau funcionamento de componentes do avião. A ocorrência coloca em risco a segurança do voo, podendo até derrubar grandes aeronaves.
O Ministério de Portos e Aeroportos diz que, entre as medidas para gerenciar o risco de fauna em aeroportos brasileiros, iniciou um projeto pioneiro para identificar as espécies envolvidas em colisões com aeronaves através de exames de DNA das amostras. O projeto conta com uma rede colaborativa de 42 aeroportos e três laboratórios. O estudo vai balizar os planos de manejo da avifauna, que é obrigatório nos principais aeródromos.

Em 20 de fevereiro, um Airbus A321 da Latam foi obrigado a retornar ao aeroporto de onde havia decolado, o Galeão, no Rio de Janeiro, após colidir com uma ave. O nariz do avião ficou destruído.
Segundo a companhia, a decolagem aconteceu às 10h35 e o avião pousou às 11h04, “com toda segurança”. O voo foi cancelado e os 200 passageiros tiveram de ser reacomodados.
O incidente levou o CEO da Latam, Jerome Cadier, a fazer um desabafo em sua rede social. “Posso apostar com vocês que a primeira ação na Justiça contra a cia. aérea, pedindo indenização por dano moral pelo cancelamento deste voo, vai chegar amanhã mesmo... E assim segue a aviação brasileira... A pergunta é: quem paga a conta?”
Conforme Cadier, apenas a Latam teve 562 eventos com aves em 2024, média de 1,5 por dia. Os pousos foram seguros, embora alguns casos tenham sido mais graves. “Em todos os casos, analisamos a gravidade e os reparos necessários. No total, as aeronaves envolvidas ficaram mais de 750 horas paradas e impactamos mais de 30 mil passageiros com cancelamentos e atrasos”, diz.
A razão do desabafo, segundo o CEO da Latam, é que são eventos evitáveis. “Os aeroportos e os municípios são responsáveis pelo manejo da fauna. É um trabalho importante e que protege os pássaros e as aeronaves. Sem investimento consistente e relevante, o custo é muito maior”, aponta.
A RioGaleão, que administra o aeroporto do Rio de Janeiro, diz que o incidente com a aeronave da Latam aconteceu a 2 mil pés, fora da área de atuação do aeroporto. A Prefeitura do Rio não se pronunciou.
Segundo dados da Anac, foram registrados no ano passado 3.461 (9,48 por dia) choques entre aviões da aviação geral e aves no espaço aéreo brasileiro. Em 2023, o recorde dos últimos dez anos, com 4.324 casos, média de 11,8 diários. O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos apontou sete ocorrências de 2024 como graves, com potencial para causar a queda do avião.
Leia também
Já os dados da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), que reúne as grandes empresas da aviação comercial, mostram que, em 2024, houve 2.145 bird strikes, média de 12,4 a cada 10 mil pousos e decolagens. No ano anterior tinham sido 2.057 (11,1 colisões a cada 10 mil movimentos) e, em 2022, um recorde de 2.294 colisões, ou 17,7 a cada 10 mil operações.
A Abear integra a comissão nacional que previne os riscos da fauna. Segundo a entidade, o evento conhecido como bird strike gera cancelamentos de voos, manutenção não programada e impactos operacionais. A Abear falou à reportagem representando as grandes companhias, como Latam, Gol e Azul, entre outras.

Pássaro na rota, voo abortado
No dia 23 de fevereiro, um avião da Gol precisou abortar o voo e retornar ao Aeroporto de Brasília, de onde havia decolado, após colidir com um pássaro que estava na rota. A aeronave tinha como destino o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Conforme a companhia, o voo G3 1445 decolou às 9h10 e, após a tripulação ter identificado o bird strike, retornou a Brasília, pousando às 9h53, em segurança. A aeronave foi encaminhada para inspeção.
No dia 15 de fevereiro, um Boeing que decolou do Aeroporto Internacional de Buenos Aires-Ezeiza colidiu com uma ave ao aterrissar no Aeroporto de Florianópolis. Houve danos na aeronave, sem risco para o pouso. No dia anterior, um Airbus A321 procedente de Goiânia (GO) ficou danificado, mas sem gravidade, ao bater em um pássaro quando pousava em Guarulhos.
No caso mais grave, em dezembro último, um urubu ficou preso no buraco aberto no para-brisa, após colidir com um avião executivo que tentava pousar em Eirunepé, no Amazonas. O corpo da ave foi retirado após o pouso. O avião levava o piloto e cinco passageiros, que sofreram apenas um grande susto.
Leia também
‘Nem todos os casos são notificados’
Para Maurício Pontes, assessor executivo e investigador de acidentes da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (Abrapac), apenas as situações mais graves acabam sendo informadas e as estatísticas ficam subestimadas. “A gente conhece as ocorrências de bird strike quando são reportadas, ou quando são casos notáveis. As mais comuns, às vezes, o piloto nem sabe que atingiu um pássaro. Nem todos os casos são reportados, mas é importante que estejamos sempre vigilantes”, diz.
O conflito entre aviões e pássaros acontece no mundo todo e, de uns tempos para cá, passou a ser mitigado de maneira mais científica, segundo ele. “Tem o aspecto ecológico, das aves que morrem nessas colisões. Elas ocupavam o espaço antes de nós. Na maioria dos casos são aves que se adaptaram ao ambiente aeroportuário, como os quero-queros, que fazem ninhos e encontram nutrientes nos gramados”, explica.
Para ele, o risco maior são aves de grande porte, como urubus e carcarás, e quando atingem o motor da aeronave. “Os motores são certificados para resistir ao impacto de aves, mas a ingestão do pássaro pode trazer desconforto e exigir que o piloto retorne por medida de segurança. Via de regra, os bird strikes não são eventos traumáticos, mas podem causar danos no avião, atraso ou cancelamento de voos e até riscos maiores, pois os impactos são frontais. As áreas mais atingidas são o nariz e as partes de sustentação, como as asas.”
Segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), unidade da Força Aérea Brasileira (FAB), devido à diversidade regional do Brasil, os riscos de colisões com fauna variam de acordo com características locais, como vegetação, fauna e densidade populacional. “Um alto número de reportes em determinado aeródromo não deve ser interpretado como indicativo de maior insegurança, mas como reflexo de uma cultura consolidada de notificação – essencial para aprimorar o gerenciamento de riscos”, diz.
De acordo com a Anac, a presença de animais no entorno dos aeroportos é influenciada pela disponibilidade de alimento, água e abrigo, cabendo ao operador do aeródromo a implementação de procedimentos para mitigar o risco de colisão entre aeronaves e a fauna. O Regulamento Brasileiro da Aviação Civil institui medidas obrigatórias para o controle, que vão de barreiras e controle dos focos de atração, até técnicas de manejo para afastar as aves do aeroporto.
Um programa de reportes criado em 2023 pela agência reforçou a cultura colaborativa do setor, incentivando os operadores a reportarem eventos de segurança de forma mais transparente. As sanções, caso os planos de manejo de fauna não sejam aplicados, podem variar de multas a restrições operacionais, inclusive de voos, para o terminal afetado. Algumas regras são sujeitas à ocupação de solo municipal.
Pontes, da Abrapac, lembra que os aterros sanitários próximos a aeroportos têm grande potencial para atrair fauna, sobretudo os urubus. “Não é algo recente, mas lembro que fizemos um trabalho junto às prefeituras para a retirada desses lixões e aterros que deu bons resultados. Conseguimos inclusive que o planejamento municipal vedasse a instalação desses depósitos nas rotas de aproximação das aeronaves”, diz.
De acordo com Raquel Rocha, coordenadora de Segurança Operacional e Carga do Ministério de Portos e Aeroportos, o programa que permite identificar as aves e morcegos que colidem com aviões é resultado de uma parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina. “Muitas vezes o piloto não sabe que ave atingiu o avião, então nossa equipe faz a coleta dos resíduos que ficam na aeronave e encaminha para o exame de DNA nos laboratórios parceiros. É um programa recente, mas já temos quase 300 amostras realizadas.”
Ela destaca que o trabalho envolve apenas as colisões que não resultam em danos, já que as de maior impacto são de competência do Cenipa. “Identificando a espécie e o local da colisão podemos saber se há uma concentração dessa fauna no local e orientar as medidas preventivas”, disse.
As informações vão para a Base Nacional de Informações de Medidas de Mitigação do Risco de Fauna, disponibilizada em março de 2024, integrada à Plataforma Hórus, de acesso público. A ferramenta contém 5.377 medidas abrangendo 122 espécies de aves, mamíferos e répteis que podem interferir na atividade aeroportuária. Segundo Raquel, o governo trabalha ainda na implantação de um programa nacional com instrumentos a serem utilizados no controle dos empreendimentos próximos de aeroportos.
Fauna mais frequente na rota de aviões
Dados da Anac apontam a ave quero-quero como a que mais causa incidentes com aviões. A espécie faz ninhos em gramados, que são comuns nos aeroportos. O segundo lugar é dividido entre o carcará, ave de rapina parente dos falcões, e a pomba-de-bando. Aparecem na sequência os marrecos e a andorinha. Há registros também com morcego, mamífero voador.
Na maioria dos casos, porém, não é possível identificar a ave que bateu no avião. Durante as operações em solo, as aeronaves podem colidir também com fauna terrestre, como répteis (lagartos), capivara e cachorro doméstico. A maior parte dos incidentes acontece durante o dia, quando a fauna está mais ativa e também por ser o período com maior quantidade de voos.
O que os aeroportos fazem para afastar aves
Manejo de ovos e ninhos, remoção de poleiros e abrigos, controle da vegetação e o uso de dispositivos de acústica de alta potência que emitem som em frequência capaz de afugentar as aves. Essas ações fizeram com que, em 2024, o Aeroporto de Guarulhos registrasse um dos menores índices de colisões com fauna entre os principais aeroportos brasileiros. Segundo a GRU Airport, houve redução de 60% das ocorrências.
Desde 2021, o aeroporto de Brasília conta com o auxílio do Zeca e mais recentemente do Vida, cães da raça Border Collie, treinados para pastoreio, para ajudar a equipe humana no trabalho diário de afugentar animais e aves que possam representar risco para a operação aeroportuária.
Além dos cachorros, a Inframerica, que administra o aeroporto, conta com o Tupã, um gavião-asa-de-telha que também afugenta aves das áreas operacionais. O movimento aéreo do aeroporto de Brasília em 2024 foi de cerca de 140 mil pousos e decolagens. Segundo a Inframerica, dados da Anac mostram redução de 30% nas colisões em relação ao ano anterior (2023).
O aeródromo de Porto Alegre também utiliza a falcoaria para afugentar espécies que apresentam risco às operações, segundo a concessionária Fraport Brasil. A equipe de gerenciamento do risco da fauna é composta por biólogos e se relaciona com os órgãos ambientais a níveis municipal, estadual e federal. Os planos de manejo incluem o remanejamento de fauna – os registros apontam alto número de espécimes translocados.
No aeroporto do Rio, segundo a RioGaleão, aves de rapina, como falcões, são adestradas para afugentar outras aves. A equipe com 16 profissionais, entre eles biólogos, engenheiros agrônomos e veterinários, fazem o manejo da fauna, identificando e catalogando as aves, que são levadas para uma área de soltura autorizada. A concessionária usa ainda cães treinados, canhões sonoros e outras técnicas regulamentadas para o manejo de fauna.
Pássaro pode derrubar avião?
Os casos são muito raros e depende de como e onde se dá o impacto, segundo Pontes, da Abrapac. Os aviões modernos são preparados para absorver as colisões com aves sem grande risco para suas estruturas. O risco é maior quando a aeronave colide com aves migratórias que voam em bandos, como aconteceu no caso conhecido como o “milagre do Rio Hudson”.
Em janeiro de 2009, um Airbus A320 da US Airways, com 155 pessoas a bordo, perdeu potência em ambos os motores após a colisão com um bando de gansos canadenses. O piloto Chesley Sully Sullenberger realizou um pouso de emergência no Rio Hudson, em Nova York, salvando todos os ocupantes. O episódio virou o filme Sully, o Herói do Rio Hudson, protagonizado pelo ator Tom Hanks.