O Brasil é uma máquina de moer pessoas negras! Recentemente em um dos meus escritos, sufocada frente às constantes violências cometidas contra a população negra, trouxe essa afirmação que descreve com exatidão o DNA racial deste país.
O Brasil é um país marcado por uma profunda desigualdade racial, onde o racismo está enraizado em todas as esferas da sociedade, fruto da herança escravocrata de quase quatro séculos de exploração e violência. A estrutura sistêmica do racismo faz com que ele influencie nos mais diversos âmbitos da vida das pessoas racializadas, inclusive, na saúde, educação, espiritualidade, economia, cultura e em outros diversos marcadores sociais.
A colonização reservou à Europa o lugar hegemônico nos últimos séculos. Um projeto, baseado na expansão de novos acordos econômicos, construiu teorias e práticas partindo dos pressupostos civilizatórios europeus, baseados nos interesses dos Estados Europeus, da Coroa e do Clero.
Esses referendaram os valores e crenças a partir do pensamento europeu, construíram todos os conceitos que servem como referências primordiais, forjaram perfis identificatórios a partir das intencionalidades dos colonizadores, fazendo com que a humanidade tivesse a Europa como única referência e fazendo do Brasil uma extensão de Portugal.
A supremacia política, cultural, religiosa, tecnológica e eurocêntrica dos últimos 500 anos levou os povos dos seis continentes do mundo a interiorizarem a figura da Europa como aquela que precede a origem das civilizações.
Pois bem, a consequência dessa percepção é que os povos dos outros continentes se tornam invisíveis. Em se tratando dos povos marginalizados pela colonização – os povos africanos e seus descendentes –, essa invisibilidade ganha proporção muito maior, pois vem tangenciada pelo racismo.
Quando refletimos sobre impactos e desdobramentos do racismo do Estado brasileiro, esses pontos devem ser colocados no centro do debate para compreender de onde nasce a estrutura racial imposta no País. Destacando que o Brasil possui o maior contingente populacional de pessoas negras fora do continente africano.
Sequestrados no período colonial, nossos ancestrais trouxeram no seu corpo não somente a mão de obra para um trabalho forçado, mas trouxeram também elementos ligados à sua verdadeira realidade cultural, que assim como a mão de obra forçada, contribuíram para o alicerce cultural do País.
Tendo sido os africanos deslocados de seus referenciais identitários, surgiu a necessidade de pensar estratégias para reintegrar esses povos a suas identidades, uma definição para que não mais se localizem e atuem à margem da experiência eurocêntrica.
Assim, os ancestrais aqui chegados recriaram espaços territoriais africanos no solo brasileiro, mantendo viva sua filosofia dentro do sistema imunológico ancestral - A Cultura - e é ela que servirá de caminho para estruturar um futuro com menos ou nenhuma presença do racismo.
Nesse sentido, não há cultura sem filosofia e não há filosofia sem cultura. Toda cultura africana – em suas múltiplas dimensões práticas, de costumes e de saberes comuns – é em si uma filosofia, bem como a ancestralidade africana é um elemento central na construção da identidade brasileira. Reconhecer e valorizar essa Filosofia Africana da ancestralidade é um passo importante para combater o racismo em todas as suas dimensões.
Isso porque, a filosofia africana, por sua vez, oferece visão de mundo e forma de pensar que desafiam as estruturas opressivas do racismo. Diferentemente da filosofia ocidental, que muitas vezes é eurocêntrica e excludente, a filosofia africana valoriza a pluralidade de perspectivas e conhecimentos alargamento da fronteira do conhecimento.
Todo território de origem ancestral africana no Brasil é cíclico e acolhedor: nos ensina a olhar para o mundo de forma mais holística, conectada e interdependente, possibilitando refletir a vida por outro sentido de existir que é, na verdade, um sentido de coexistir.
Essa coexistência nos ensina sobre a importância da comunidade e do coletivo, ensinando que somos todos interligados e que a nossa liberdade está intrinsecamente ligada à liberdade do outro.
Essa visão de mundo é fundamental para combater o racismo, pois nos lembra que a luta contra a opressão não é apenas questão individual, mas sim uma luta coletiva e, sobretudo, construída a partir de um senso emancipatório em pessoas negras a partir de seus próprios referenciais históricos. História é poder!
Reconhecer e valorizar a história negada pela colonização ensina a valorizar o conhecimento ancestral e a sabedoria acumulada ao longo dos séculos. Torna crianças negras conhecedoras de outro alicerce histórico e torna as crianças brancas menos refratárias ao racismo, mostrando que o conhecimento não se restringe apenas a livros e instituições acadêmicas, mas está presente nas tradições, práticas culturais e experiências vividas pelas comunidades africanas em território nacional.
Valorizar esse conhecimento é fundamental para combater o racismo, pois nos permite reconhecer a importância das vozes marginalizadas e contracolonizar o pensamento, além de descentralizar o saber, a coletividade, a espiritualidade e a busca pelo equilíbrio entre seres humanos e natureza. Esses princípios podem ser aplicados no enfrentamento às estruturas de racismo, pois promovem a valorização da pluriversalidade e a construção de relações mais igualitárias e respeitosas.
Porém, é fundamental que as instituições de ensino incluam a história e a cultura afro-brasileira de forma mais abrangente e precisa nos currículos escolares. É preciso que os estudantes tenham acesso a uma educação que valorize a pluralidade étnico-racial e que promova o respeito e a valorização das diferentes culturas presentes no País.
Em suma, a ancestralidade e a filosofia africana têm papel fundamental no enfrentamento do racismo no Brasil. Reconhecer e valorizar nossa ancestralidade, assim como adotar uma visão de mundo mais conectada e interdependente, são passos importantes para combater o racismo e construir uma sociedade mais justa e igualitária. É hora de olharmos para a sabedoria ancestral africana e aprendermos com ela na busca por um futuro mais inclusivo e respeitoso.
* Katiúscia Ribeiro é filósofa, doutora em Filosofia Africana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é professora pesquisadora convidada do Departamento de Africologia e Estudos Afro-Americanos, o primeiro e mais importante do mundo, localizado na Universidade de Temple, na Filadélfia (Estados Unidos). É professora da pós-graduação da PUC/SP e apresentadora do programa O Futuro é Ancestral, no canal GNT. Também coordena o Laboratório de Africologia e Estudos Ameríndios Geru Maã da UFRJ. É fundadora e CEO do Instituto Ajeum Filosófico, que propaga o ensino das filosofias africanas para emancipação da população negra diaspórica.
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